O mais lírico de nós

Falecido há exatos 50 anos e com passagem pelo Ceará, Manuel Bandeira segue como um dos principais nomes da literatura nacional, influenciando gerações com vigorosa produção poética

Escrito por Diego Barbosa , diego.barbosa@diariodonordeste.com.br

Geralmente encoberto pela ansiedade diária, o pequeno das coisas é matéria-prima para quem sabe burlar a monotonia do cotidiano. No vasto campo da literatura, não é raro encontrar nomes que se valeram de mínimas percepções para agigantar análises sobre o próprio eu, a sociedade ou até gerações inteiras. Virginia Woolf (1882-1941), por exemplo, inicia um de seus contos reparando em uma tímida marca na parede, ao passo que Gabriel García Márquez (1927-2014) mergulha o Coronel Aureliano Buendía em uma simples memória de infância para instaurar a saga do clã protagonista de "Cem anos de solidão".

Aproximando as referências para as bandas de cá, Manuel Bandeira foi um dos autores brasileiros que mais se valeram dessa característica de potencializar o diminuto. "Com ele, o vocabulário coloquial se consolidou como instrumento de poesia, palavras do cotidiano a serviço da matéria miúda da vida", analisa, em entrevista por e-mail, o acadêmico, ensaísta e poeta carioca Antônio Carlos Secchin, ocupante da cadeira de número 19 da Academia Brasileira de Letras (ABL), instituição que também permitiu o acesso àquele conhecido por perseguir Pasárgada.

Legenda: Ponte férrea,ícone de Quixeramobim,uma das cidades onde Bandeira tratou a tuberculose

Não à toa, Bandeira consolidou-se um poeta das insignificâncias, utilizando igual pena tanto para falar a respeito de tosse, febre e suores noturnos - feito no poema "Pneumotórax" - quanto sobre o belo do mundo: deu, por exemplo, nova face à andorinha que vai lá fora dizendo "passei o dia à toa, à toa", no poema que leva o nome do pássaro.

Hoje, quando se completam exatos 50 anos de partida do mais lírico dos trovadores modernos, é oportuna a travessia pelas realizações de Bandeira - incluindo a passagem pelo Ceará para tratamento da doença que o matou, a tuberculose, em 1968 -, destacando importantes fatos da vida do escritor e compreendendo o legado por ele deixado nas letras do Brasil.

Técnica

Secchin argumenta que, no campo da criação poética - na qual o autor pernambucano mais se destacou - a herança deixada é o extremo uso da criatividade para compor. "A técnica mais evidente em sua poesia é a de não deixar a técnica transparecer. Profundamente erudito e conhecedor do artesanato do verso, dava ao leitor a falsa sensação de que seu texto fluía espontâneo, quando, em arte, até a espontaneidade é fruto da construção", sublinha.

A mesma percepção é compartilhada pelo cronista cearense Bruno Paulino, admirador de Bandeira desde criança. "O primeiro contato que tive com sua obra foi na escola e me encantei com a capacidade de, liricamente, captar o cotidiano. Ele é pessimista, sim, mas não é negativo, e tem uma potência poética enorme", observa, complementando que chegou a ler trabalhos em prosa de Manuel, mas tem total paixão pela poesia do autor.

De fato, o extenso trabalho desenvolvido pelo recifense nascido onde hoje é a Rua Joaquim Nabuco, em 1886, na capital pernambucana, atravessa prosa, poesia, crítica literária e de arte e até a docência. São feitos que atestam a dedicação de consolidar o Brasil como rota privilegiada para a incursão criativa.

"A poesia dele é bússola para os meus caminhos, pois me faz perceber a cinza das horas, a tocar um tango argentino diante da vida que poderia ter sido e não foi, mas também me encoraja a buscar a tão sonhada Pasárgada dos dias vindouros"
Elayne Castro
Mestra em letras pela Universidade Federal do Ceará

"Lê-lo para aprender a dançar um tango argentino, a ser como o rapaz desvairado, a deixar o corpo entender-se com outro corpo, a ser como o rio que deflui e, ao fim de tudo, aprender a deixar a mesa posta, com cada coisa em seu lugar"
Ricardo Kelmer
Escritor, roteirista e letrista musical

"Como todo ser humano, precisamos de fugas e, assim como Bandeira tem Parságada para aliviar a dor, podemos ter em sua obra um refúgio. A sensualidade de sua arte alimenta a paixão pela vida e o amor, sentimento tão importante neste momento"
Marilane Gondim
Professora de língua portuguesa

Doutora em Letras e mestre em Educação pela Universidade de Minas Gerais (UFMG), Antonieta Cunha faz um apanhado profissional do literato na apresentação de "Manuel Bandeira - Crônicas para jovens" (Global Editora, 2012). Segundo ela, "sua obra poética é vastíssima, transitando por tendências diversas. Passou de poeta parnasiano ao simbolismo, depois ao modernismo (do qual era chamado pai), embora não fosse escravo de nenhum estilo".

"Mas falar do grande poeta é apresentar apenas parte do que foi esse artista. Fez mais de 40 traduções, e entre os autores por ele traduzidos estão Shakespeare, Brecht, Proust, André Maurois e Morris West. Sua prosa, também muito extensa, engloba os chamados ensaios e crônicas, a que se dedicou até bem perto da morte, no Rio de Janeiro, em 13 de outubro de 1968", completa.

No Ceará

O falecimento evocado por Antonieta faz recordar a passagem de Bandeira por terras cearenses, onde esteve para tratar a tuberculose. Aconteceu em 1907 e 1908, nas cidades de Quixeramobim, Uruquê e Maranguape. Como bom quixeramobinense, Bruno Paulino conta que ainda hoje existe o prédio onde o poeta ficou hospedado, localizado em frente à Igreja Matriz da cidade.

"Por conta dessa passagem por aqui, ele até escreveu uma crônica, no dia 29 de agosto de 1956, intitulada 'Saudade de Quixeramobim', na qual rememora a estadia no município", comenta. Dialogando com o escritor, Paulino desenvolveu um texto em resposta àquele criado pelo pernambucano sobre a cidade. "Chama-se 'Carta para Manuel Bandeira', no qual comparo como era o lugar que ele visitou à época e como está agora".

A homenagem do cearense a Manuel não para por aí. Bruno afirma que na crônica "Sobre videogames e namoradas" - presente em seu segundo livro, "A menina da chuva" - há uma alusão no título ao fato de o poeta ter declarado que sua primeira namorada foi um porquinho-da-índia. "Acho tudo dele muito atual. Para além dessa questão sentimental, há um enfoque sobre a degradação humana, por exemplo, como no poema 'O Bicho', e um olhar específico para a louvação da figura feminina. É uma poesia, portanto, também contemporânea, que ainda repercute", dimensiona o fã.

Tanto é que, na terra natal de Bandeira, uma encorpada programação deu conta de ecoar a relevância do escritor. Nas últimas quarta (10) e quinta-feira (11), o Espaço Pasárgada, em Recife - ambiente criado em homenagem ao artista - promoveu o evento "50 anos sem Bandeira - Estrela da vida inteira", com uma série de atividades culturais em reconhecimento ao trabalho do profícuo autor.

A iniciativa envolveu contação de histórias, apresentação de trabalhos e inauguração de painel confeccionado pelo artista plástico Toni Braga. Formas ativas de reverenciar quem se curvou, inteiramente, à arte.

Para entender o poeta

A Cinza das Horas (1917): Primeiro livro de Manuel Bandeira, traz poemas parnasiano-simbolistas marcados, sobretudo, por um tom fúnebre, tendo em vista que os versos foram compostos durante o período que a tuberculose o acometeu.

Carnaval (1919): Obra em que está presente um dos poemas mais polêmicos do autor, "Os sapos", que mobilizou as lutas modernistas do início do século XX e se tornou ícone da rebeldia da Semana de Arte Moderna de 1922.

Libertinagem (1930): A liberdade formal dá o tom do livro, investindo em temas simples, geralmente conectados à pureza da infância e, às vezes, a uma fina ironia ou humor irreverente. Também envolve uma aura de brasilidade em poemas como "Mangue" e "Evocação do Recife".

Crônicas da Província do Brasil (1936): É composto pela diversidade temática, apresentando os contornos maleáveis do gênero crônica - desde um estilo que se aproxima do ensaio erudito até a "conversa fiada literária", meio lírica, meio anedótica.

Itinerário de Pasárgada, memórias (1954): É encarada como a primeira biografia estritamente literária publicada no Brasil, munida de forte inteligência poética, indo além do relato de uma vida de escritor.

Estante

Glória
Victor Heringer

Publicado em 2012 pela 7Letras, o livro ganha reedição com design de capa sintonizado a outra obra do carioca Victor Heringer (1988-2018) publicada pela Companhia das Letras, "O amor dos homens avulsos". Na história, passamos a conhecer a rotina dos Alencar Costa e Oliveira, uma família descrita como de "doentes imaginários" e que se comunica com tiradas e diálogos zombeteiros. Além do humor peculiar, a linhagem tem outra característica: nenhum morre de doença ou de acidente. Um testamento engenhoso sobre a melancolia.
Glória

Victor Heringer
Companhia das Letras
2018, 296 páginas
R$ 49,90/ R$ 29,90 (e-book)

Bill Viola
John G. Hanhardt
Com texto do curador e historiador de arte John G. Hanhardt e organização de Kira Perov, esposa e diretora executiva do Bill Viola Studio, a edição apresenta os primeiros contatos do artista norte-americano com o mundo da videoarte, na década de 1970. Culmina com a criação do vídeo "Martyrs (Earth, Air, Fire, Water)", em 2014, encomendado para exibição na Catedral de São Paulo, em Londres. No livro, o autor fornece ainda ampla análise sobre o trabalho desse importante videoartista, dedicando-se a esmiuçar suas inspirações, inquietações e técnicas.

Bill Viola
John G. Hanhardt
Edições Sesc
2018, 296 páginas
R$ 104

Tolos & Mortais
Bernard Cornwell

É ambientado na Inglaterra elisabetana e narra a trajetória do jovem Richard Shakespeare, que sonha em fazer carreira na cena teatral de Londres, dominada pelo irmão mais velho, William Shakespeare. Mas ele não tem um tostão nem apoio de seu irmão que, em vez de o acolher, entrega-o aos cuidados de Sir. Godfrey, um clérigo cruel e pervertido que treina meninos para furtar e encenar. Com carisma e talento, o caçula ingressa na companhia de teatro. Porém, quando um precioso manuscrito desaparece misteriosamente, as suspeitas recaem sobre Richard.

Tolos e Mortais

Bernard Cornwell
Record
2018, 364 páginas
R$ 44,90

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