Marcelo Yuka deixa legado singular entre o amor e o ativismo

Ex-integrante d`O Rappa, o músico morreu no último sábado (19), após sofrer uma sequência de dois AVCs; jornalista destaca suas impressões sobre o artista e a obra

Escrito por Felipe Gurgel , felipe.gurgel@diariodonordeste.com.br

A notícia da morte do poeta, músico e ativista Marcelo Yuka, no último sábado (19), me deixou aficionado. Como alguém que se sentia ligado a sua percepção de vida, ao invés de imergir no noticiário sobre o falecimento, coloquei "Minha Alma" pra ouvir repetidamente. E me emocionei, não sei se pela tristeza, ou por uma mera conexão - só consegui "sentir", não entendi a emoção.

Yuka escreveu "a minha alma está armada/ e apontada/ para a cara do sossego/ Pois paz sem voz/ Não é paz/ é medo" para uma das canções mais conhecidas d`O Rappa (RJ), banda que ajudou a fundar e popularizar na década de 1990.

"Minha Alma" diz tanto: é sobre o apego à violência que sufoca o País até hoje; é sobre a criança que emudece depois de presenciar adultos armados se matando; é sobre a ansiedade do pacificador que não crê, em algum momento, na suposta paz "garantida" pelas imensas grades dos condomínios.

Nascido no dia 31 de dezembro de 1965 no Rio de Janeiro (RJ), Marcelo Fontes do Nascimento Viana de Santa Ana morreu aos 53 anos, depois de sofrer uma sequência de dois AVCs (acidente vascular cerebral) no último ano. Yuka vivia paraplégico desde novembro do ano 2000, quando foi atingido por nove tiros ao tentar interceptar um assalto na Tijuca, bairro da Zona Norte do Rio, onde morou até a morte.

Apesar do trauma e da adaptação à cadeira de rodas, Yuka não comprava, depois disso, o discurso e a postura do medo. Descrente de uma "paz sem voz", o músico seguiu ligado a Tijuca e à causa do desarmamento e do reconhecimento das periferias.

Há 13 anos, entrevistei o músico pela primeira vez, a pretexto do referendo sobre o comércio de armas no Brasil e do projeto musical criado por ele depois d`O Rappa, o F.U.R.T.O.

A fala comum de Yuka - ele mesmo uma "vítima" de assaltantes armados - trazia a poética de "Minha Alma", de uma forma mais clara. Eu tinha essa impressão mas não conseguia lembrar, de imediato, enquanto a música tocava na minha cabeça, repetidamente, após sua morte.

Um pouco antes de sentar e escrever esse texto, tive acesso às páginas impressas com a entrevista, feita em outubro de 2005. A matéria vinha com dois títulos: "A palavra contra a covardia" e "Eu não acredito em paz armada!". Yuka era isso.

O Rappa

Marcelo Yuka não durou tanto tempo na formação d`O Rappa depois que virou cadeirante. Baterista e letrista da banda, passou a discordar dos propósitos dos demais integrantes e "foi convidado a se retirar", em 2001. Yuka saiu do grupo, mas O Rappa seguiu e sempre colheu frutos a partir da obra que refletia as razões e o coração do poeta.

Canções como "O Pescador de Ilusões", "Me Deixa" e "O Que Sobrou do Céu", escritas pelo letrista, não deixaram de ser hits do grupo e permanecem na memória afetiva dos fãs. Liderada pelo vocalista Marcelo Falcão, a banda acabou no ano passado.

Meditação

Yuka tornou-se uma figura de visibilidade ao escrever e agir pela paz. Condicionado a perceber o mundo pela ótica de um deficiente físico, há 17 anos ele começava a buscar a paz, também, dentro de si. O músico foi um dos artistas ouvidos pelo documentário "Eu Maior", lançado em 2013, sobre a descoberta do "eu" interior. E ainda deu seu depoimento para "Hermógenes, professor e poeta do yoga" (2015), filme que recorta a trajetória de um dos pioneiros do yoga no Brasil.

Nos últimos anos de vida, o artista costumava declarar como a prática da meditação ajudou-lhe a lidar com as limitações da rotina de cadeirante. Consciente de como a "aura" em torno das letras de sucesso d'O Rappa poderia massagear seu ego, Yuka naturalmente chamava atenção, em suas entrevistas, pelo olhar atento e sedento pela criação de um outro mundo, que não fosse este, dominado pela força.

Lembrei da letra de "O Que Sobrou do Céu" ao pensar na partida de Yuka, em paralelo à realidade de um País fissurado em encontrar nas armas uma solução para a paz. "Faltou luz, mas era dia, o sol invadiu a sala/ Fez da TV um espelho refletindo o que a gente esquecia". Para a gente que fica, a luz do poeta ativista sugere recordar, diante de tanta violência, o que temos esquecido.

5 curiosidades sobre Marcelo Yuka 

O músico compôs e gravou quatro discos com O Rappa: “O Rappa” (1994), “Rappa Mundi” (1996), “Lado B, lado A” (1999) e “Instinto coletivo Ao vivo” (2001) 

“Sangueaudiência” (2005) foi o único álbum lançado por Yuka com a banda F.U.R.T.O. Em 2017, saiu seu primeiro e último disco solo, “Canções pra depois do ódio” 

Ele esteve em Fortaleza com o F.U.R.T.O em outubro de 2005, pela programação do festival Ceará Music, hoje extinto, no Marina Park Hotel 

O documentário “Marcelo Yuka no Caminho das Setas” saiu em 2012, sob direção de Daniela Broitman. O filme é focado na vida de Yuka após ele ter sofrido o assalto na Tijuca 

Marcelo Yuka foi candidato a vice-prefeito do Rio de Janeiro em 2012, pela chapa encabeçada por Marcelo Freixo (Psol)

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