Livro reúne autoras que fizeram da opinião uma arte

"Afiadas", de Michelle Dean, reúne série de perfis interconectados de autoras que inscreveram seus nomes no seleto e hostil panteão da intelectualidade dos EUA

Escrito por Dellano Rios , dellano.rios@diariodonordeste.com.br

Se você fizer duas listas a partir de suas próprias leituras, a primeira contendo seus escritores favoritos e a segunda com os livros que leu mais recentemente, quantas autoras vão aparecer em uma e na outra? Caso a questão nunca lhe tenha ocorrido, são grandes as chances de, em ambas as listagens, predominarem nomes masculinos e de que a desproporção entre os gêneros seja grande.

Para quem se sentiu incomodado com a descoberta, há uma notícia boa e outra ruim. A primeira é de que o problema não é exatamente você, que se for uma pessoa razoável não terá nenhuma rejeição às mulheres, seja quais forem suas ocupações. A notícia péssima é que você não é o único a seguir às cegas essa tendência. Pior, a situação é generalizada. Editoras publicam menos mulheres, prêmios literários são concedidos mais a eles do que a elas e, até mesmo entre as personagens nos livros, elas se encontram em desvantagem numérica. Se você, como tantos outros, acaba não lendo escritoras, é fácil entender porque certas editoras dão menos espaço para elas. E vice-versa.

"Afiadas: As mulheres que fizeram da opinião uma arte" é uma obra escrita por uma leitora também incomodada com esse quadro desigual. Caso fosse uma leitora comum, a jornalista canadense Michelle Dean poderia ter expiado sua culpa dando mais diversidade às suas estantes. Como escritora, ela dispõe de armas diferentes e, com elas, partiu para a ação. "Há algo de especialmente valioso em saber que, apesar de tudo, é possível golpear com força o tão difundido machismo", escreve. Seus golpes vêm na forma de uma série de ensaios interconectados, sobre autoras de primeira grandeza da vida intelectual dos EUA. Ela perfaz episódios e carreiras exemplares - sobretudo para jovens autoras como Michelle Dean.

Protagonistas

As personagens principais do livro são dez escritoras, com estilos, campos de atuação e ideias bem distintas. Há desde uma filósofa de ascendência acadêmica, como a alemã Hannah Arendt, até jornalistas como Joan Didion e Janet Malcolm, passando pela ensaísta Susan Sontag, as críticas de cinema Pauline Kael e Renata Adler e a roteirista e cineasta Norah Ephron. São figuras destacadas no meio cultural no século XX, com inserção no mercado editorial e jornalístico dos EUA, na casta mais intelectualizada do país. Em comum, tem ainda o vigor das ideias, que atraiu (e atrai) admiradores e detratores, parte destes últimos embasados em mal disfarçado preconceito.

Legenda: "Afiadas: As mulheres que fizeram da opinião uma arte" / Michelle Dean / Editora Todavia 2018, 416 páginas R$ 74,90/ R$ 44,90 (e-book)

"Os homens podem ter sido superiores às mulheres numérica e demograficamente (no meio intelectual). Mas na questão mais essencial, isto é, a de produzir uma obra que mereça ser lembrada, uma obra que defina os termos do próprio cenário, elas estão em absoluto pé de igualdade com eles - e, muitas vezes, acima deles", escreve, na introdução.

E não é exagero.

Pauline Kael, por exemplo, foi uma crítica pouco ortodoxa, de estilo radicalmente pessoal. Apontou falhas graves em vacas sagradas como Hitchcock, Kubrick e Fellini. Há quem ame odiá-la; há quem faça dela também uma instituição sacrossanta. Já ignorá-la, para quem se pretende crítico, está fora de cogitação.

Hannah Arendt, por sua vez, foi capaz de problematizar o totalitarismo da experiência nazista, em textos densos, mas que cabiam numa revista semanal como a The New Yorker. Judia, exilada nos EUA para não ser morta pelo regime de Hitler, ela criou inimizades na comunidade judia por sua crítica, por vezes dolorosa para judeus. Em tempos de acessão de populistas de extrema-direita, é uma autora reatualizada.

E Susan Sontag, de meados dos anos 1960 até sua morte, em 2003, foi uma voz ativa e recorrente nos debates da sociedade norte-americana. Com uma curiosidade inesgotável sobre tudo (novamente: sem exagero), escreveu sobre temas que vão do cinema europeu à epidemia de Aids. Sontag, ainda hoje, é o modelo de intelectual, com uma prosa de estilo próprio bem definido, pensamento afiado e empenho em desmontar aquele senso comum maquiado de ideias, típicos da opinião pública esclarecida.

As escolhas da autora têm uma forte marca pessoal. Ecos de cada uma delas podem ser "ouvidos" na forma como Michelle Dean escreve, sobretudo de Susan Sontag e Janet Malcolm, autoras marcadamente críticas, eruditas, incisivas e avessas a exercícios autobiográficos. Às partes dos livros, só cabem a definição abrangente de ensaio, numa mistura homogênea de biografia, crítica e história cultural.

Guia

Michelle Dean é precisa em sua escalação. "Afiadas" é um livro político, ao propor contar a história a partir de um ponto de vista que costuma ser ignorado. A autora não evita as contradições de suas perfiladas; mas tampouco precisa recorrer a mitificações para traduzir a excelência - e, em alguns casos, genialidade - de cada uma delas.

E se alguém ainda está remoendo a descoberta suscitada pelo primeiro parágrafo, "Afiadas" é um excelente antídoto. Funciona à perfeição roteiro de leituras, para uma estante de alta qualidade, marcada por estilos bem definidos e ideias poderosas.

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