Espetáculo da manipulação

"O mamulengo é uma poética, é um fantoche que bebe na relação direta com a plateia", diz Maria Vitória

Escrito por Antonio Laudenir , laudenir.oliveira@diariodonordeste.com.br

Para a atriz, diretora e dramaturga Maria Vitória, pensar a dramaturgia relacionada à manipulação de bonecos é um processo contínuo. Ligada aos estudos nas artes cênicas do século XX - em que o trabalho de direção e encenação ganharam força semelhante à do autor de peças -, demanda constante reflexão e reelaboração.

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Responsável pela formação "Dramaturgia para Teatro de Bonecos", em curso no Porto Iracema das Artes até 11 de dezembro, Vitória argumenta que o texto com bonecos deve se adequar a certas características dessa manifestação.

A partir da formação, os alunos - 15 no total - poderão compreender melhor de que maneira pensar o texto como suporte para as ações cênicas a serem executadas pelos objetos animados. A ideia é desenvolver uma espécie de partitura com gestos e ações para experimentar e recriar na cena.

"Cada manipulação se encaminha para um tipo de pensamento dramatúrgico, seja no texto original ou no adaptado. O mamulengo é uma poética, é um fantoche que bebe na relação direta com a plateia. Tem o boneco de balcão, com outras características. Cada técnica vai demandar questões próprias", divide a artista. Entre 2007 e 2011, Maria Vitória foi presidente da Associação Brasileira de Teatro de Bonecos - Núcleo Ceará, dedicada ao fomento, difusão e fortalecimento do teatro de bonecos.

Vitória também atuou em diversos espetáculos, entre eles "Solo de Clarice" (Grupo Formosura), pelo qual recebeu o Troféu "Palmas" no I Festival de Monólogos - Solos Nordestinos de Fortaleza; "A Lição" (Grupo Pesquisa) e "Frei Tito: Vida, paixão e morte" (Formosura).

Sobre a relação íntima entre texto, ator e boneco, ela ressalta que a construção narrativa do espetáculo pode ser diretamente afetada pelo tipo de material daquele último - o papel requer peculiaridades diferentes da esponja, que é distinta da resina e assim por diante. Até o corpo do ator influencia na forma como a plateia recebe a mensagem. Em certas peças o elenco pode estar vestido de acordo com o fundo preto do palco. Tudo isso implica uma dramaturgia única.

"O boneco pode dizer uma frase com o corpo sem que precise verbalizar, não raro algo bem diferente do teatro protagonizado por atores reais. Todo bonequeiro ou marionetista pode ser um ator, mas nem todo ator pode ser bonequeiro. Existe uma questão física, é preciso pensar no corpo do manipulador. Ao trabalhar com um longo texto, deve-se considerar o quanto o boneco pesa no braço, por exemplo", descreve a realizadora.

Formação

Sobre o poder educativo do teatro com bonecos, Vitória adverte o quanto esse jogo cênico é poderoso e pode ser decisivo na transmissão de conhecimento.

A atriz cita o caso da encenação de Dom Quixote, protagonizada pelo grupo cearense Formosura, referência no Ceará na pesquisa e produção teatral animada. Durante a montagem no Theatro José de Alencar, no Dia Nacional do Teatro, a trupe se apresentou para uma plateia formada por crianças e pré-adolescentes. Certo receio pairou no ar por conta do texto filosófico de Miguel de Cervantes (1547-1616). Para surpresa dos integrantes, os jovens adoraram e entenderam o espetáculo.

Fazendo uma ponte com a realidade nordestina, em especial a cearense, Vitória aponta a força do mamulengo, sobretudo por tratar a plateia como elemento extremamente ativo. A relação é direta, graças ao diálogo com os presentes. "Houve um caso em que conseguimos conversar muito bem com um grupo de crianças. Na montagem, em determinado momento perguntamos o que faríamos com uma bruxa. Elas falavam para matar e torturar. Conversamos, através dos bonecos, sobre não matar, e sobre a bruxa ser ressocializada".

Vitória confidencia que, em todos os seus anos de trabalho, nunca tinha visto crianças pedindo algo dessa natureza. Geralmente falavam em prender - um ou outro chegava a mencionar matar. O pedido de tortura até então era inédito. "O teatro de bonecos deve ir a mais lugares e construir uma outra sociedade", sugere.

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