Do luto à luta: Morte de filhos leva pais cearenses a investirem em projetos sociais

Brincadeira perigosa, suicídio, câncer. Famílias ressignificam a dor com a criação de projetos sociais voltados para combater a causa da morte dos filhos

Escrito por Roberta Souza , roberta.souza@diariodonordeste.com.br

Se Lucinaura, Demétrio e Maria Aparecida pudessem escrever a própria história, é certo que evitariam um capítulo específico da biografia: a perda precoce de um filho. Quando Bia, Dimitri e Kauê partiram, as narrativas que estavam sendo construídas no dia a dia foram interrompidas; os sonhos em conjunto também. Foi preciso que os pais buscassem novos motivos para seguir vivendo, e encontraram isso revisitando a trajetória compartilhada com os entes nos poucos anos em que eles passaram por aqui. 

Bia, por exemplo, era uma garota muito alegre, que estava sempre rodeada de pessoas e disposta a ajudá-las. Seu abraço caloroso e carinhoso era sinônimo de cura. Ela chegava até mesmo a cantar ao telefone para colegas que estavam do outro lado da linha e não conseguiam dormir.  Aos 13 anos, porém, a jovem escolheu não mais continuar com a própria vida, deixando a família com inúmeros questionamentos. Dentre eles, "o que fazer com o amor que fica?". 

"Quando fomos elaborando nosso luto, pensamos: o que nós podemos fazer pra manter Bia presente na nossa vida enquanto respirarmos? A gente queria fazer alguma coisa que parecesse com a personalidade de Bia, que fosse a cara dela, que fosse muito do que ela via da vida, e como ela gostaria que as coisas fossem", lembra a mãe, Lucinaura Diógenes, emocionada.

Foi então que, em 2013, cinco anos após a partida da jovem, nasceu o Instituto Bia Dote, uma organização sem fins lucrativos que trabalha com a prevenção do suicídio. 

A salinha no 11º andar da Torre Quixadá reúne vários objetos que pertenceram à garota. Um violão, que ela quase não tocou, um coração feito com peças de lego que ela adorava, uma coleção de carrinhos, quadros, livros... O ambiente, organizado pela mãe, Lucinaura; o pai, Tadeu; e a irmã, Alice, acolhe centenas de pessoas para acompanhamento psicológico, tal como o abraço dela provavelmente acolhia. "Presentificar Bia por meio do Instituto me ajudou muito, me ajuda, é um projeto de vida. Pro resto da minha vida eu vou trabalhar com isso", conta Lucinaura, que iniciou até um curso de Psicologia para atuar mais ativamente na causa.  

DimiCuida 

dimicuida

Demétrio Jereissati foi outro pai que abraçou uma nova missão após a morte do filho Dimitri, de 16 anos. O jovem perdeu a vida após brincar com o jogo do desmaio, uma prática de não-oxigenação estimulada por vídeos disseminados na internet. Com poucas informações no Brasil a respeito de casos semelhantes, os pais do garoto, Demétrio e Heloisa, foram em busca de respostas logo nos primeiros meses de luto, viajando até o 2º Colóquio Internacional dos Jogos de Desafios, na França. 

As informações colhidas no evento e outras pesquisas feitas a partir dele impulsionaram o casal a criar, em Fortaleza, em 2014, o Instituto DimiCuida, com objetivo de fazer um trabalho de prevenção para profissionais, pais, crianças e adolescentes, além de dar esclarecimento e apoio às famílias que vivessem situações semelhantes.

"Quando a gente passa por uma situação dessas, conversar com quem passou pela mesma coisa e tem uma compreensão, traz um conforto maior. Você tá próximo de quem passou. É como se você enxergasse no outro a força que ele teve para superar e isso lhe ajudasse também a encontrar o seu caminho", observa Demétrio. 

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O pai de Dimitri confessa que não imagina como estaria se não fosse trabalhando nesse instituto. "Quando se perde um filho, o dia seguinte não vai mais ser igual. Ele não é mais igual. A gente aprende a viver com o dia seguinte como ele veio", conta Demétrio. Hoje, cada prevenção, cada artigo escrito e cada oportunidade de falar sobre o tema servem de oxigênio para a família Jereissati. "A gente imagina que possa estar evitando que outras famílias e outras pessoas passem por isso. E de alguma forma a gente se alinha quando consegue fazer esse trabalho", avalia. 

Além da prevenção para a causa da morte do adolescente, o instituto trabalha em outras duas frentes, baseadas nas ações e nos sonhos dele:  a sensibilização e mobilização da sociedade para os cuidados com animais de rua; e a promoção do desenvolvimento e execução de ações de capacitação, qualificação profissional e oportunidades de trabalho na área do turismo ecológico e de atrações naturais. "Talvez hoje eu pense mais do Dimitri do que quando ele tava aqui embaixo. Isso de alguma forma nos conforta e nos alimenta", aponta o pai, que também acredita sentir-se mais próximo do filho enquanto conta sua história. 

Cândido Kauê 

No interior do Ceará, mais precisamente na cidade de Aiuaba, Maria Aparecida Freitas também encontrou uma forma de reconectar-se com o filho falecido em outubro de 2012. Vítima de câncer, Cândido Kauê lutou contra a doença dos 2 aos 5 anos de idade, mas durante todo o período demonstrou força e transmitiu mensagens a sua maneira. "Ele era uma criança que sempre dividia o pouco que tinha com os coleguinhas, que se sentia muito bem quando conseguia consolar um colega que estava chorando", lembra a mãe. 

Todos os desafios que a família passou durante o tratamento de Kauê, desde os financeiros até os desgastes físicos e emocionais, levaram Aparecida a inspirar-se no comportamento humanitário do filho após sua partida. Cinco meses depois da perda, ela registrou a Fundação Cândido Kauê, uma entidade beneficente de assistência social, sem fins lucrativos, que atende às necessidades psicossociais de crianças e adolescentes com câncer, e também de seus pais, em pelo menos nove municípios da região. 

"Quando cada um de nós seres humanos consegue fazer um pouco, significa tanto. Ajudar a quem precisa é o fundamental na vida da gente", acredita a mãe do pequeno. Os testemunhos de quem hoje recebe ajuda da Fundação a encorajam a continuar ao lado de um conjunto de profissionais voluntários que se preocupam somente em fazer o bem. "Antes, eu achava que jamais ia sentir alegria de novo. Mas lhe confesso que com esse projeto em ação há momentos de gratidão em que não consigo conter as lágrimas de felicidade". 

A passagem física de Cândido Kauê, Dimitri e Bia por aqui foi realmente bem curta, mas no livro da vida dos seus familiares, amigos e de todas as pessoas que cruzam com os projetos que levam seus nomes, fica provado diariamente que a história dos três não tem fim. 

Conheça o trabalho das instituições:
 

Instituto Bia Dote 
Foco: Prevenção ao suicídio e valorização da vida 
Público-alvo: Atendimento para pessoas a partir de 12 anos 
Endereço: Av. Barão de Studart, 2360, Aldeota 
Horário de funcionamento: De segunda a sexta-feira, de 8h às 18h 
Contato: (85) 3264-2992 

Instituto DimiCuida 
Foco: Prevenção sobre jogos de não-oxigenação e desafios de internet 
Público-alvo: Crianças, adolescentes, profissionais das áreas de educação, saúde, segurança pública e pais 
Endereço: Av. Santos Dumont, 1388, Aldeota 
Horário de funcionamento: De segunda a sexta-feira, de 8h às 18h 
Contato: (85) 3255.8864 / (85) 98131.1223 (whatsapp)

Fundação Cândido Kauê 
Foco: Assistência social a pessoas com câncer 
Público-alvo: Crianças, adolescentes e pais 
Endereço: Rua Olga Feitosa, 188, Centro, Aiuaba-CE 
Horário de funcionamento: De segunda a sexta-feira, de 7h às 17h 
Contato: (88) 3524-1457 

+ Além do Ceará - Conheça outras iniciativas nacionais de famílias que trasformaram o luto em luta:

1. Vai Lucas: Após a morte de Lucas, de 10 anos, por asfixia decorrente de engasgamento, numa atividade escolar, a mãe Alessandra Begalli e a tia do garoto, Andrea Betiatii, criaram o projeto “Vai Lucas”, voltado para campanhas de primeiros socorros em Campinas. A luta avançou para uma lei federal, sancionada em outubro, que torna obrigatória a capacitação em noções básicas de atendimento para professores e funcionários de estabelecimentos de ensino. 

2. Não Foi Acidente: Depois de perder a mãe e a irmã, vítimas de um atropelamento por um carro em alta velocidade, com motorista supostamente embriagado, em São Paulo, Rafael Baltresca e amigos criaram o movimento “Não Foi Acidente”. Após seis anos de luta, o projeto conquistou a alteração da Lei Seca federal, em dezembro de 2017, ampliando a pena do crime de trânsito, no caso de homicídio culposo, de 2 a 4 anos para 5 a 8 anos.

 

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