Seguindo a trilha de "1808", Laurentino Gomes percorre, a partir da delimitação de um espaço e de um tempo, a História de nosso país, desenhando, com tintas precisas, os elementos que configuram, antes, durante e depois, a construção do Brasil, tecendo os fios que se entrelaçaram e costuraram nossa teia
A obra apresenta um subtítulo deveras curioso: "Como um homem sábio, uma princesa triste e um escocês louco por dinheiro ajudaram D. Pedro a criar o Brasil - um país que tinha tudo para dar errado... e, no entanto, deu certo". Com tal estratégica, aponta os elementos-chave que em que irá repousar o interesse maior do texto. Este, por sua vez, é realizado através de uma linguagem simples, objetiva, assim em tom de conversa de alpendre, com pitadas de humor e de ironia, mas rigorosamente dentro da norma culta, mas sem jamais perder a descontração - o que despe o livro do ranço comum aos tratados científicos.
Ressalte-se, aliás, que, a rigor, não se trata de uma composição acadêmica, tampouco segue os rigores que orientam esse gênero. Não. Mais se aproxima de uma conferência informal, destinada mais a um público leigo do que, precisamente, a pesquisadores ou estudiosos minuciosos de nossa História. O que é ressaltado logo na abertura: "O destino cruzou o caminho de D. Pedro em situação de desconforto e nenhuma elegância. Ao se aproximar do riacho do Ipiranga, às 16h30 de 7 de setembro de 1822, o príncipe regente, futuro imperador do Brasil e rei de Portugal (D. Pedro IV), estava com dor de barriga"; esta, talvez, causada por alimentos estragos ou mesmo por água contaminada.
Por outro lado, elimina qualquer tinta que possa associar o "Grito do Ipiranga" aos grandes acontecimentos de natureza épica: a montaria do príncipe, em vez do alazão fogoso imaginado pelo pintor Pedro Américo, era, sim, uma besta baia, isto é, uma mula desfigurada, mas capaz de vencer os obstáculos da Serra do Mar. Enumeram-se as testemunhas do fato, seus desdobramentos imediatos e também o processo por que passou o país para a sua consolidação enquanto nação independente. Merece ainda destaque o conjunto das notas que orientam os leitores interessados no assunto na busca de leituras especializadas - procedimento que acompanhará todos os capítulos.
Uma das riquezas desse livro reside nos dados singulares a respeito do Brasil à época da Independência: "de cada três brasileiros, dois eram escravos, negros forros, mulatos, índios ou mestiços. Era uma população pobre e carente de tudo. O medo de uma rebelião escrava pairava como um pesadelo sobre a minoria branca. Os analfabetos somais mais de 90% dos habitantes. Os ricos, embora muito ricos, eram poucos e, em sua maioria, ignorantes", E mais: o país recém-nascido não possuia exércitos, navios, oficiais, armas, munição para assegurar a guerra pela independência, e esta se anunciava prolongada e, perigosamente, cara.
Antes, quando o rei D. João VI retorna para Lisboa, em abril de 1821, deixara em terras brasileiras duas faces de um mesmo país: por um lado, uma elite mínima, já íntima das transformações que sacudiram a Europa no século XIX; de outro, um vasto território abandonado pelo poder, entregue à miséria, ao atraso, e a missão dos que sonhavam com a Independência era a de unir esses dois brasis. O surgimento da imprensa entre nós, por exemplo, passou a disseminar os ideais de liberdade, de cidadania, que varriam a Europa liberal. A censura à expressão de pensamento foi abolida em 1821. O interessante é saber que poucas eram as vozes que visavam a uma separação entre Brasil e Portugal.
A crônica acerca da vida na Corte brasileira, a vida privada e pública de seus membros - em especial a de D. Pedro I - tudo isso implica uma nota maior de humanidade e de cores vivas à reconstrução das cenas. E não faltam notas musicais, afrescos, traços de arquitetura, da culinária, do vestuário etc - essenciais para que se possa estabelecer uma ponte entre o passado e o presente. Trata-se de uma leitura enriquecedora, uma vez que realiza um retrato vivo, pleno da cor local, de nossas raízes - abrindo, desse modo, mais um caminho (e estes são inúmeros) por que se povo, enfim, compreender o que fomos, o que somos e o que possivelmente seremos num tempo não muito distante.