Comida do sertão nordestino é apreciada no Rio de Janeiro em bar de chef filho de cearenses

Emerson Pedrosa utiliza culinária da região em solo carioca como gatilho para entrever memórias e tocar pelo paladar

Escrito por Diego Barbosa , verso@verdesmares.com.br
Legenda: Tradicional nas bandas de cá, carne de sol com baião de dois invade também o Rio de Janeiro
Foto: Foto: Eduardo Almeida

Tem coisas que salvam um dia. O aconchego do lar invadido pelo sabor de comida bem preparada muitas vezes é o ponto alto de uma rotina fadada ao total estresse e desânimo. Se, além de gostoso, o prato ainda render boas lembranças, comer torna-se uma experiência de mergulho na nossa identidade, em quem somos enquanto indivíduos com histórias a contar e memórias a reviver.

Foi unindo essas duas pontas que o chef paulistano Emerson Pedrosa, com raízes no Ceará, criou o conceito do Bar Kalango, aberto em abril do ano passado no bairro Praça da Bandeira, zona norte do Rio de Janeiro. O distrito é um famoso reduto de estabelecimentos gastronômicos apreciados pelo público carioca, com diversidade de bares e restaurantes surgidos de um movimento de valorização das comidas de boteco, no início dos anos 2000.

> Conheça a história de Emerson Pedrosa, chef paulistano com raízes no Ceará

> Restaurante Severyna de Laranjeiras aposta em gastronomia nordestina no Rio de Janeiro

O que torna o Kalango diferenciado nessa atmosfera de intenso trânsito de cheiros e sabores é o contexto no qual foi gerado. Autodefinido como alguém que "nasceu dentro de um bar" - em virtude de o pai, Seu Pereira, sempre ter administrado estabelecimentos que tinham como foco a comida - Emerson inaugurou a própria casa gastronômica valendo-se dos sabores do sertão nordestino para reavivar memórias da região em território carioca.

Legenda: Sonho de aipim com camarão é prova do investimento de Emerson em pratos afetuosos
Foto: Foto: Eduardo Almeida

Não à toa, toda a orquestra no bar é montada tendo como foco delícias simultaneamente simples e sofisticadas, além de recheadas de memórias e afagos. A preços camaradas - o "zécutivo" sai por R$ 25 durante a semana e, aos sábados e domingos, varia de R$ 32 a R$ 45 - dá para degustar desde pratos bastante conhecidos por cá, caso de carne de sol com baião de dois, até outros com pegadas diferentes.

É o caso de ceviche de banana; sonho de aipim com camarão; e arroz de leite com paçoca de carne de sol (preparado em referência ao que o chef comia na casa da avó). Com cardápio variando diariamente, é possível apreciar também uma versão diferente do feijão-verde tradicionalmente consumido no Ceará.

"Aqui, eu cozinho em uma panelinha de barro que trouxe da cidade de Cascavel, no litoral cearense. E faço com feijão fradinho, incluindo maxixe, jerimum, bacon e linguiça, por exemplo", detalha
.

Entre os petiscos, há a opção por coxinha crocante com massa de milho, macaxeira na manteiga de garrafa e pastel de moqueca de banana-da-terra. No almoço, além das sugestões já mencionadas, há frango com pequi, salada com favas, arroz Maria Izabel com carne de sol e abóbora e, ainda, mugunzá com capote. Fartura garantida.

Legenda: Unindo alta gastronomia e simplicidade à mesa, está o prato ceviche de banana
Foto: Foto: Eduardo Almeida

Na mesa

O jeito de servir a comida também é todo afetuoso, fazendo jus ao lema que o bar possui, "Comida, sertão e afeto". Após a realização do pedido, o cozinheiro traz tudo em pratos de ágata e louças tradicionais, encurtando a distância entre passado e presente. Ao término, caso o cliente aceite, ele coa, na mesa, café fresquinho em suporte de cerâmica - item, inclusive, à venda numa espécie de lojinha do bar.

No que toca às sobremesas, merece destaque o creme de tapioca com rabanada e doce de leite. Nele, Emerson combina aspectos das cozinhas cearense e carioca - algo que apelidou de "cearoca" - resultando numa iguaria única. Não dá para comer sem fechar os olhos.

Legenda: O creme de tapioca com rabanada e doce de leite é um dos mais pedidos da casa
Foto: Foto: Eduardo Almeida

A reação, inclusive, é apenas uma das inúmeras que o chef presencia diante de quem passa pelo Kalango. "Já vi muita gente chorando aqui nas mesas lembrando dos gostos da infância, comentando: 'Esse feijão é a cara da minha avó. Depois que ela morreu, ninguém nunca mais comeu'", lembra.

"De fato, tem muitos netos e bisnetos de nordestinos que vieram para o Rio de Janeiro na época da seca e, desde então, nunca mais tiveram contato com a cultura local. Sempre tive vontade de fazer essa comida verdadeira", diz o chef.

Sintonia

A afirmação entra em sintonia com a opinião de Thomas Troisgros, filho do renomado cozinheiro francês Claude Troisgros e atual mestre-cuca do Restaurante Olympe. De passagem pelo Kalango quando da visita da equipe do Verso ao bar, ele comenta o que o atrai ao estabelecimento de Pedrosa.

"Adoro comida nordestina. No Kalango, tudo é super bem feito, com carinho e amor. Você sai alimentado e feliz. Só reclamo porque o Emerson não abre o bar em dias de segunda-feira", ri.

O sorriso, por sinal, é elemento-rei no semblante do proprietário do bar. A conversa finaliza, assim, com mais um afago gastronômico. "Cozinhar, pra mim, é tocar as pessoas. Se eu conseguir fazer com que minha comida toque o coração e traga uma memória afetiva, já sou um cozinheiro realizado".

Saiba Mais

Com nome remetendo ao animal símbolo da resistência no sertão - escrito com "k" em forma de homenagem a Kátia Barbosa, chef de pais paraibanos e sócia do empreendimento - o Bar Kalango é todo feito de singularidades cearenses. A começar pelos detalhes que integram o aconchegante ambiente. Descansando em estantes, estão imagens de Padre Cícero, um chocalho de gado e um livro intitulado "Dicionário do cearês". Já nas paredes, frases como "I Love Forró" e "Aqui tem borogodó" dividem espaço com lambe-lambes coloridos, uma das marcas registradas do estabelecimento, que geralmente rendem registros dos visitantes nas redes sociais.

Sinta o ambiente do Bar Kalango ouvindo a playlist preparada pelo chef Emerson Pedrosa para a casa

Serviço

Bar Kalango. Rua São Valentim, 513, Praça da Bandeira, Rio de Janeiro. Aberto de terça a domingo, a partir das 12h. Contato: (21) 2504-0088

Assuntos Relacionados