Do lado de dentro

Intervenções pensadas em prol da humanização no cárcere. A Lei de Execução Penal (LEP) prevê medidas para ressocializar o preso. Na prática, é visto que ofertas de trabalhos e ações sociais têm melhor eficácia quando há vínculos entre agentes e detentos. Na Região Metropolitana de Fortaleza (RMF), servidores dão exemplos de tratamento humanizado

Escrito por Emanoela Campelo de Melo ,

Entender a necessidade da ressocialização e fazer algo enquanto servidor-cidadão. Dentro do Sistema Penitenciário do Ceará há uma minoria que volta o olhar para o problema do outro. Enquanto dezenas de agentes penitenciários são afastados das funções sob suspeita de corrupção e integrar associações criminosas, tantos outros dedicam suas rotinas de trabalho para fazer do enclausuramento um espaço de ressocialização.

Além de confiscar fisicamente, em muitos casos, o cárcere chega a anular a subjetividade de um preso já marginalizado pela sociedade. Como pensar e fazer diferente a partir de condições precárias? Aos 65 anos de idade, 40 como agente penitenciário, Francisco Lino Coelho percebeu que a mudança devia partir do pensamento: "Por onde eu passar, vou fazer alguma coisa para marcar que estive ali".

Desde 2011, Lino é diretor da Cadeia Pública de Caucaia, "Cigana", onde 60 homens membros das facções criminosas Guardiões do Estado (GDE), Comando Vermelho (CV) e Primeiro Comando da Capital (PCC) convivem diariamente, sem guerrilhar entre si. No início deste segundo semestre de 2018, o servidor foi indicado como finalista do 1º Prêmio de Espírito Público. A homenagem veio devido à sua atuação no equipamento da Região Metropolitana de Fortaleza (RMF).

Há seis anos, foi iniciado na cadeia o primeiro projeto do Brasil voltado para dependentes químicos em regime fechado. De lá para cá, Francisco Lino implementou salas de aula e consultórios médico e odontológico. Tudo foi construído com a mão de obra dos detentos.

"Quando cheguei aqui, era terrível. Para mim, quando o ambiente é constrangedor, isso já é uma tortura. Agora, aqui não tem cheiro de cadeia. Eles não usam uniformes. Faço reuniões mensais e sou contra repressão. Aqui tem escola, mas ninguém é obrigado a estudar. Eu mostro o porquê é importante e fica a critério dele, estudar. O aprendizado é algo infinito. Todos nós vamos morrer sabendo pouco", pontuou Lino olhando para a sala de aula lotada dentro da cadeia.

Um dos 60 encarcerados é Valmir Souza Pinheiro, 46. O preso foi condenado a 12 anos em regime fechado pelos crimes de receptação e adulteração de chassi. Valmir conta que esteve foragido durante anos por pensar que não suportaria passar milhares de dias em um ambiente com condições insalubres. "Fui preso em uma blitz e vim para cá. Quando imaginava prisão, não imaginava algo assim. Tinha medo de encarar um presídio. Aqui, eu sei que se preocupam com a minha recuperação. Recebo oportunidades. Eu sou tratado como ser humano e as coisas resolvidas com conversas", expôs Valmir Souza.

Esforços

O Instituto Presídio Professor Olavo Oliveira (IPPOO) II, em Itaitinga, é outra unidade com projetos pensados para modificar a rotina dos encarcerados. Preso devido ao crime de assalto, João Paulo Araújo, de 31 anos, interno do IPPOO II, confessa que foi neste presídio que percebeu seu valor como cidadão.

Quando fora das grades, João Paulo contou ocupar sua rotina com atos ilícitos. No cárcere, os dias passaram a ter horários pré-determinados para tarefas, sempre objetivando beneficiar a si e aos colegas, mas não mais tirando proveito dos outros, e sim tornando o presídio um ambiente minimamente confortável para cumprir a sentença.

Às 7h, diariamente, Araújo começa a coletar lixo acumulado no seu pavilhão. O dever é parte do projeto "Reciclo Vidas" iniciado no equipamento no ano de 2016. Conforme a Secretaria da Justiça e Cidadania (Sejus), a ação aconteceu em todas as grandes unidades da RMF. De janeiro a agosto de 2018, só no Instituto, foram reaproveitadas 11 toneladas de plásticos.

João Paulo reconhece que a atividade foi capaz de modificar seu pensamento com relação ao aprisionamento. "Aqui dentro, a cabeça de uma pessoa que se ocupa é diferente. Eu sei que tem um monte de gente ali que não se importa, mas eu quero muito voltar à sociedade e ser bem aceito. Sou marceneiro, tenho minha profissão. Quando eu pensava em prisão, imaginava tudo escuro, mas tenho que me dar oportunidade também", destacou o preso.

O agente penitenciário Clécio Fernandes, supervisor do Núcleo de Empreendedorismo da Coordenadoria de Inclusão Social do Preso e do Egresso (Cispe), ressaltou que os internos de baixa periculosidade escolhidos para participar do 'Reciclo Vidas' são previamente capacitados. Em troca, a Sejus oferta que a cada dia trabalhado, um dia de pena seja reduzido. "Consegui reduzir em um mês a minha pena", completou Paulo.

Para Fernandes, a responsabilidade conferida ao detento é o primeiro estágio para melhorar a autoestima dele. "Diariamente, são retiradas sacolas com recicláveis. Cada unidade prisional tem de 6 a 8 agentes participando da coleta. Eles gostam do ambiente limpo e organizado. Menos lixo, menos mosquitos, menos doenças. Acaba que é um bem para todos nós", disse.

Saiba mais

9.063 pessoas em cadeias públicas

Destas, 8.700 estão em unidades voltadas para o público masculino. Em unidades especializadas no público feminino, há 363 mulheres. O excedente populacional é registrada em ambos

29.286 é o total de presos no Ceará

O número divulgado no último levantamento pela Secretaria de Justiça e Cidadania (Sejus) inclui suspeitos e condenados mantidos nos regimes aberto, fechado e semiaberto

1.107 encarcerados no IPPOO II

A capacidade deste equipamento é para 492 internos. Com isso, Há um excedente carcerário de 615 pessoas, o que demonstra superlotação que chega a 125% nesta unidade.

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