Desperdício de alimentos exige nova postura de consumidores

Pesquisadores indicam que falhas no processo pós-colheita, negação da compra de itens imperfeitos e a cultura do consumismo contribuem para o problema. Enquanto isso, o Brasil corre o risco de voltar ao Mapa da Fome

Escrito por Nícolas Paulino , nicolas.paulino@diariodonordeste.com.br

Arroz e feijão (ou baião), salada e um pedaço de carne, frango ou peixe costumam formar um conjunto que apazigua a fome do cearense. Porém, nem tudo que colore o prato é ingerido e, depois do deleite, afunda no cesto do lixo ou desce pelo ralo da pia. Imagine a comida que sobrou e foi eliminada na sua última refeição. Multiplique pelas pessoas da família, do prédio, do bairro, da cidade toda? De pouco em pouco, gramas se avolumam em toneladas.

Análises da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) constataram que, no Brasil, 10% do total de alimentos disponível não são consumidos. Em média, a entidade estima que 15 milhões de toneladas sejam perdidas e desperdiçadas por ano, no País. Em cálculo simples, cada brasileiro jogaria fora 600 gramas de comida por dia, e, ao fim de um ano, acumularia 223 kg.

A projeção mundial também assusta: a cada três quilos de alimento produzido, um vai para o lixo. Para Eveline de Alencar, professora do Curso de Gastronomia da Universidade Federal do Ceará (UFC), falta consciência "da ponta" - o consumidor final -, já que os agricultores não querem perder lucro e investem em formas de preservar os alimentos.

"O que poderia ter alimentado duas pessoas no teu prato, você tá jogando no lixo", alerta. Ainda mais quando a dobradinha arroz e feijão é a que mais se joga fora, segundo ela. "As pessoas produzem muito praticamente todos os dias e não gostam de reaproveitar", lamenta. É tempo, aponta a pesquisadora, de trabalhar a culinária criativa e a utilização integral dos alimentos. O caldo do feijão pode virar sopa e, o grão, salada. Já a banana machucada pode virar sorvete, smoothie ou geleia.

Padrão

Além da deficiência de infraestrutura e no acondicionamento, a questão cosmética é outra perda grave indicada por Ebenezer de Oliveira, pesquisador da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). Mesmo com os valores nutricionais intactos, muitas frutas, por terem pequenas imperfeições na casca, são descartadas do mercado "porque não estão bonitas o suficiente para serem apresentadas na prateleira". É a ditadura da beleza que chega até para os vegetais.

Ebenezer atenta que o combate ao desperdício passa necessariamente pela educação do consumidor. "Nós, enquanto País em desenvolvimento, compramos muito mais do que conseguimos consumir. Vimos de uma cultura em que você não compra duas bananas pra levar pra casa, mas uma penca, sabendo que parte você vai jogar fora", analisa.

Por isso, segundo ele, é preciso haver um consumo doméstico mais equilibrado, já que a produção dos alimentos pressiona o meio ambiente pelo gasto de água e pela emissão de gases-estufa. Eveline Alencar também destaca que, se um restaurante está desperdiçando alimentos, falta planejamento no item mais essencial do negócio: o cardápio. Ou seja, também tem investimento indo para o lixo.

Doações

A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) estabelece que, se a comida é exposta, como nos casos de restaurantes self-service, ela precisa ser jogada fora. Se foi preparada e armazenada na cozinha, pode ser doada. Contudo, se o estabelecimento doar as sobras e esse alimento causar alguma doença, o doador é responsabilizado. Por isso, a maioria prefere jogá-las fora.

Para ajudar a gerenciar doações, o Brasil dispõe, hoje, de 220 bancos de alimentos. No Ceará, há nove deles, e mais dois estão em instalação, segundo o Ministério do Desenvolvimento Social (MDS). Os bancos atuam no recebimento de alimentos considerados fora dos padrões de comercialização, mas adequados ao consumo humano. Um deles funciona em Caucaia.

Através de parceria com redes de supermercados, o projeto prevê o beneficiamento de cerca de 2 mil pessoas que vivem em assentamentos indígenas e quilombolas do município. Os geradores propõem a doação de alimentos orgânicos como frutas, verduras, legumes e carnes. Um deles chega a produzir cerca de 500 kg de resíduos por dia.

Segundo o coordenador do Banco, Edmilson Soares, os beneficiários poderão aproveitar cerca de 40% dos alimentos - índice bem além dos 17% verificados numa parceria anterior. "Não compensava. Estavam usando a gente pra tirar o lixo deles", lamenta. Agora, o cenário é diferente: as comunidades foram preparadas para tratar os alimentos e destinar corretamente os resíduos não utilizados.

Desde agosto, o biólogo Ivan Diogo ensina técnicas de compostagem aos moradores. Os restos são misturados ao solo com capim e folhas e se transformam em adubo orgânico. "Eles tanto vão poder vender como usar para a própria subsistência da comunidade, que pode começar a produzir hortas comunitárias de melão, jerimum, tomate? É a total reutilização dos resíduos gerados", destaca.

Com os trâmites avançados, o objetivo é dar às pessoas um Natal diferente, como espera a diretora de Segurança Alimentar da unidade, Joselina Lima. "Quando chegamos com uma carrada, a gente tem que ter cuidado porque as pessoas querem invadir para comer. Algumas dizem que não tinham o que dar pra família naquele dia. Outras, que nunca tiveram o privilégio de comer uma ameixa ou uma pera, porque muitas vezes elas viam nos supermercados, mas não podiam comprar. Agora, elas têm orgulho de levar para casa", resume.

Os destaques das últimas 24h resumidos em até 8 minutos de leitura.