Crime organizado: um problema nacional que aflige o Ceará
Os desafios do combate ao tráfico e de seu poderio financeiro e bélico só aumentam com o passar dos anos. A reportagem foi até São Paulo, Paraná e o Paraguai para mostrar a complexidade do problema, e como as conexões criminosas têm afetado o Ceará
Criminosos expulsaram dezenas de famílias da Comunidade da Babilônia e pretendiam erguer um muro cercando os apartamentos para se protegerem de ataques rivais, dizem os moradores. Dominada pela facção local, Guardiões do Estado (GDE), o condomínio vive dias de tensão e de incerteza, diante de tantas ameaças. Lá dentro as coisas vão mal há anos. Armas, drogas, disputas. Uma rajada de tiros mata um líder do tráfico, a sede indiscriminada de poder esquarteja e ateia fogo em outro. Mais conflito. Fuzis, corpos no chão, carros em disparada, portas fechadas, possíveis novos alvos escondem as próprias testas. Silêncio.
O ciclo se repete sem muitas respostas. “Na Babilônia já começou tudo errado”, dizem os PMs. O Conjunto Habitacional Novo Jardim Castelão fazia parte de um programa da Prefeitura de Fortaleza, para abrigar as famílias que moravam às margens do Rio Cocó, mas tinha apenas 65% das obras concluídas quando foi invadido, no ano de 2013. Desde lá, a ocupação dos apartamentos, localizados no Barroso II, se dá de forma desordenada. “A ‘Babilônia’ é o maior exemplo de que o Estado não pode deixar os criminosos se firmarem, porque depois de estar desse jeito não dá para fazer mais nada”, ponderou um militar da área. Aproveitando-se de tantas faltas, o crime organizado avançou e ocupou muitos outros espaços. No Ceará, os números de guerra deixam claro que as estratégias de enfrentamento às facções não têm sido eficientes. Por aqui, os criminosos decidem se vidas devem se perder ou serem salvas: se firmam pacificações, as mortes caem; se brigam, há picos nos homicídios. Em 2017, o acirramento em nível nacional entre Primeiro Comando da Capital (PCC) e Comando Vermelho (CV) foi determinante para os mais de cinco mil assassinatos contabilizados no Estado, pela Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS). A Comissão de Estudo das Vítimas dos Crimes Violentos Letais Intencionais, criada pela Pasta, aponta que a maioria dos mortos são do sexo masculino, têm de 17 a 29 anos, são negros, com baixa escolaridade e moradores da periferia. Nas ruas tomadas pela insegurança, pessoas apressadas seguem regras para não serem assaltadas, e até mortas. Na periferia, as coisas são ainda mais difíceis. Marcada pela saudade do filho morto e do que está desaparecido, uma diarista (identidade preservada) conta que o mais velho se viciou em drogas, não conseguiu pagar a conta e acabou executado. “Atiraram nele na calçada de casa. Ele entrou gritando, chamando por mim e morreu em meus braços”. O mais novo seguia os passos do irmão. “Soube que ele estava em uma tal de GDE. Lutei muito, consegui uma vaga em uma clínica de reabilitação de uma igreja, mas ele fugiu. Tem mais de um ano que procuro por ele”.
Alejandro Juvenal Herbas Camacho Júnior, irmão de ‘Marcola’, que comandou a pacificação das facções no Ceará. Auricélio Sousa Freitas, o ‘Celim’,atual líder da facção local GDE
Assim como o filho da diarista, muitos outros jovens foram cooptados pela GDE. Criada em 2015, no Conjunto Palmeiras, a organização trava uma briga sangrenta com o Comando Vermelho e detém o domínio de áreas estratégicas para o tráfico local, como as Comunidades da Babilônia e do Lagamar e o bairro Tancredo Neves. Os fundadores da GDE são dissidentes insatisfeitos com o sistema de organização do PCC. “Eles saíram e começaram a cooptar bandidos cearenses. Por isso a GDE é tão violenta, porque não tem uma doutrina”, explicou um oficial da PM, que atua em uma célula de Inteligência, e preferiu não se identificar. Outra fonte de um setor de Inteligência da SSPDS considera que as tentativas de negar o avanço do crime organizado no Ceará só deram tempo e espaço para as facções se fortalecerem. “O surgimento da GDE é um descontrole, um excesso. Criminosos locais se juntarem e montarem uma facção para desestabilizar ainda mais uma situação, que já era tensa, era tudo que a Segurança Pública não precisava. Não podia ter ido em frente em hipótese alguma”, ponderou.
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Atualmente comandada pelo traficante Auricélio Sousa Freitas, o ‘Celim’, cunhado de João Bosco da Rocha, o ‘João Presinha’, a GDE coleciona estragos, como a onda de ataques a prédios públicos e ônibus, ocorrida em abril de 2017; e a carnificina que se tornou a disputa com o CV. “O foco deles é o tráfico local. Ainda não há organização financeira. Não há um caixa, uma contabilidade. O maior problema que temos em relação à GDE é a violência, porque eles matam muito. Nessa tentativa de eliminar o Comando Vermelho do Ceará, estão matando até as companheiras dos traficantes presos, para acabarem de vez com qualquer chance dos rivais permanecerem no tráfico”, afirmou o oficial da PM. O militar revela também que a guerra travada no ‘Lagamar’ foi encerrada. “Não tinha mais quem matar. Eles conseguiram expulsar todo mundo do CV e, hoje, todo o ‘Lagamar’ é da GDE. Das 300 casas da ‘Cidade de Deus’, apenas 70 estão ocupadas, todas as outras foram evacuadas. Só mora lá quem a GDE deixa. A briga, agora, se mudou para a Babilônia”, revelou. Durante a entrevista, o policial repetiu o quanto considera a situação grave e pontuou: “A Polícia só resolve alguma coisa se o Judiciário funcionar de forma célere e se puder contar com a eficiência do Sistema Penitenciário, o que não é o caso do Ceará”.
Anunciada
Líderes do PCC, CV, Família do Norte (FDN) e do Sindicato do Crime foram presos, em Fortaleza, entre 2016 e 2017. A importância do Ceará para as facções seria a posição geográfica, em relação à Europa. Explicações não faltaram, enquanto a situação piorava. Há anos o Estado assiste ao fortalecimento das organizações criminosas e vive, agora, as consequências de uma tragédia anunciada. A faceta ‘empresarial’ do tráfico local apareceu com a chegada de Alejandro Juvenal Herbas Camacho Júnior. O irmão do líder do PCC, Marcos Willians Herbas Camacho, ‘Marcola’, passou despercebido enquanto montava um esquema que ultrapassava fronteiras, oceanos e chegava até outros Continentes. Conhecido como ‘Júnior da Mombaça’, no Ceará; e como ‘Marcolinha’, em São Paulo, Alejandro se passava por empresário e se estabeleceu aqui durante alguns anos, morando na Rua Ricardo de Castro Macedo, no bairro Luciano Cavalcante. Agiu de forma determinante pela primeira vez na Sapiranga, onde comandou um acordo de paz entre as facções, que rapidamente se expandiria para vários outros bairros.
‘Júnior’ foi preso, em Fortaleza, durante a deflagração da ‘Operação Quinta Roda’, da Polícia Federal, em março de 2016. Ele declara que nunca comandou nenhum esquema de tráfico. No entanto, há indícios que a quadrilha liderada pelo irmão de ‘Marcola’ agia junto a fornecedores de cocaína da Bolívia, e de maconha do Paraguai. O bando contava com um núcleo que recebia as drogas em Corumbá, no Mato Grosso do Sul, e a distribuía pelo Brasil em caminhões. O grande esquema, que movimentou toneladas de narcóticos, envolvia dezenas de pessoas na logística, contabilidade, distribuição e captação de novos clientes que estavam até nos Estados Unidos da América.
Enquanto permanecia no Ceará, Alejandro Júnior contava com a ‘gerência’ de Gilmar Pinheiro Feitoza, em São Paulo. O operador do PCC mantinha uma loja de eletrônicos de fachada, mas na verdade era um dos principais intermediários da importação da droga do Paraguai e da Bolívia, para o esquema que desembocava no Ceará. Os dois e mais 27 pessoas foram capturados na mesma operação. Atualmente, o irmão de ‘Marcola’ está preso por tráfico de drogas, em Presidente Venceslau, São Paulo, onde toda a cúpula do PCC é custodiada.
Alejandro Júnior atuou aqui no ramo de revenda de veículos e tinha uma distribuidora com rotas para outros Estados do Nordeste. Conforme a Inteligência da SSPDS, ele se valia do negócio para movimentar caminhões e espalhar grandes quantidades de cocaína e maconha em meio à mercadoria lícita.
Facções começaram a agir no Estado há mais de 30 anos
Francisco Carlos de Araújo Crisóstomo, delegado de Polícia Civil, que investiga o crime organizado no Ceará há décadas
“Aos poucos fomos descobrindo que as coisas já não eram mais as mesmas. Percebemos que algo muito grande por trás dos crimes que aconteceram ao longo dos anos. Éramos uma Polícia acostumada a investigar criminosos aleatórios e nos vimos diante do crime organizado”. Assim o delegado de Polícia Civil, Francisco Carlos de Araújo Crisóstomo, define os mais de 30 anos em que investigou os movimentos do crime organizado no Ceará. Segundo ele, os primeiros sinais de que as facções haviam chegado aqui apareceram ainda nos anos 1980, quando em 1986 a loja ‘King Joias’ foi assaltada; e Francisco Siqueira Lima sequestrou e matou um corretor de imóveis. As duas ações foram atribuídas ao Comando Vermelho (CV).
“O surgimento dessas ações nos impressionou. Não havia criminoso com fuzil e granada aqui naquele tempo. Mas, mesmo as ações do passado parecendo grandiosas, nem se comparam com as de agora. As facções se organizaram como empresas altamente lucrativas e têm os presídios como seus escritórios. Aqui no Ceará, comandam rentáveis ‘negócios’ de tráfico de drogas, assassinatos e extorsões. Tem muito celular nas penitenciárias e isso dificulta demais o trabalho da Polícia”, afirmou o delegado.
O policial lembra uma sequência de fatos e conclui: “Sem dúvida os assaltos da Corpvs e da Nordeste Segurança mostraram que as coisas haviam mudado e que a criminalidade era outra no Ceará ”. O primeiro caso que Francisco Crisóstomo cita aconteceu em julho de 1999, na base da transportadora, no bairro Aeroporto. O bando entrou no local vestindo fardas da Polícia Federal, na companhia do gerente, que havia sido sequestrado na noite anterior, e disse que faria uma inspeção. Logo após, anunciou o assalto.
Nesta época Antônio Jussivan Alves dos Santos, o ‘Alemão; Marcos Rogério Machado de Morais, o ‘Bocão’ e Antônio Artênio da Cruz, o ‘Bode’, já participaram da ação na linha de frente. Seis anos depois, estariam envolvidos em um dos maiores furtos do Brasil, o do Banco Central de Fortaleza. Outros bandidos de quem se ouviria falar depois também participaram do roubo à Corpvs, como o próprio Marcos Willians Herbas Camacho, o ‘Marcola’, líder do PCC. Os criminosos levaram R$ 6,9 milhões da transportadora.
No ano seguinte, ocorre o outro grande assalto citado por Crisóstomo. Desta vez contra a Nordeste Segurança de Valores (NSV), localizada em Caucaia. Os próprios assaltantes revelaram à Polícia que o crime foi planejado durante oito meses e cerca de R$ 300 mil foram gastos para o roubo ser colocado em prática. Uma semana depois do assalto, dois policiais civis do 2ºDP (Aldeota) foram checar uma denúncia anônima sobre um veículo suspeito, estacionado no Edifício Michelle, na Rua Tomás Pompeu. Quando vistoriavam a Blazer foram surpreendidos por tiros de fuzil. Era a quadrilha que havia roubado a NSV.
A PM foi chamada para dar apoio à ação. Durante um tiroteio, Jefferson Nunes Andrade, fugitivo do Presídio de Carumbé, no Mato Grosso, foi morto. ‘Marcola’ estava no local, mas conseguiu fugir. Um dos assaltantes, identificado como Maurício Alves Ribeiro, o ‘China’, acabou sendo capturado. “Os bandidos que vieram para esses assaltos eram muito perigosos. Linha de frente de ações de grande porte. O estrago que fizeram no Ceará foi grande, porque foi a prisão deles que trouxe o PCC para cá de forma definitiva”, disse Francisco Crisóstomo.
Reincidentes
Parte do dinheiro da NSV seguiu seu destino no dia 9 de fevereiro de 2000, quando o piloto e ex-cabo da Aeronáutica, Uel Leite de Souza, levantou voo de uma pista clandestina, em Sobral. No avião Navajo 310-P havia R$ 1,3 milhão. O maranhense, de Barra do Corda, acabou sendo capturado, em Maringá, no Paraná, no dia 28 do mesmo mês. Em agosto de 2000, o filho dele, Uel Leite Souza Filho, participou do sequestro do Boeing 737-200 da Vasp, que ia de Foz do Iguaçu para São Luís, para conseguir dinheiro e resgatar o pai da prisão. O maranhense não foi resgatado, mas conseguiu ser solto depois. Se envolveu de tal maneira com o tráfico que é conhecido como o “piloto do Beira- -Mar”. Em 2007, foi preso na Argentina e em novembro de 2015 foi extraditado para o Brasil.
‘Maurício China’ era uma peça importante para o PCC. Depois de ser preso pelo assalto à NSV, iniciou os ‘batismos’ no Instituto Penal Paulo Sarasat e (IPPS) e filiou os primeiros cearenses à facção do Sudeste. Ele está preso por tráfico, em Valparaíso, São Paulo, desde 2008. Outro capturado no roubo à NVS foi Sebastião Nunes Siqueira, um comerciante de renome no Mato Grosso do Sul. ‘Tião’ conseguiu ser transferido para seu Estado de origem e lá fugiu da prisão. Atualmente, cumpre pena por tráfico, em Tremembé, São Paulo.
Tráfico
Além dos assaltos a banco, no final dos anos 1990, o Ceará também foi percebido pelo tráfico, de maneira mais incisiva. Luiz Fernando da Costa, o ‘Fernandinho Beira-Mar’ esteve aqui para organizar o ponto final de uma rota internacional, que enviaria drogas para os Estados Unidos da América e Europa. ‘Beira-Mar’ passou pelo Paraguai, Uruguai e Bolívia. Estabeleceu ligações com as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farcs) e ofereceu armas e munições à guerrilha, em troca de proteção para ter livre acesso aos cartéis de droga colombianos. De acordo com um relatório da Secretaria de Defesa Social de Pernambuco, o criminoso investiu no Nordeste e no ano de 2001 tinha 15 imóveis, somente na Paraíba. Segundo Francisco Crisóstomo, quando ‘Beira-Mar’ esteve aqui, alugou um apartamento no bairro Jardim das Oliveiras. “Ele não chegou a morar aqui, mas alugou um apartamento e passou uma temporada organizando as rotas. Foi ‘Beira-Mar’ que conseguiu montar esse esquema que leva droga da Colômbia para o Paraguai, do Paraguai para o Sudeste do Brasil e do Sudeste para o Nordeste. Daqui enviam para a Europa”, relembrou.