Autores de Chacina são indiciados por matarem homem por engano

Despachante de veículos foi assassinado pela facção Guardiões do Estado (GDE) após ser confundido com um integrante do Comando Vermelho (CV)

Escrito por Cadu Freitas - Repórter ,

Era cerca de 17h do dia 28 de janeiro de 2018. A sede de matar parecia não ter findado com o assassinato de 14 pessoas no 'Forró do Gago', no dia anterior. Parte da quadrilha suspeita de cometer a matança nas Cajazeiras agora também é indiciada pelo assassinato do despachante de veículos que atuava no Departamento Estadual de Trânsito (Detran-CE), João Eudes Rebouças Filho, de 38 anos, conforme apurou a reportagem.

A vítima, contudo, foi confundida pelos olheiros da facção Guardiões do Estado (GDE) com um suposto inimigo, integrante da organização Comando Vermelho (CV). Sem antecedentes criminais, João Eudes era frequentador do bar e amigo pessoal do dono do empreendimento onde foi morto.

Da cadeira na qual assistia a um jogo de futebol, no bairro Jardim União, João Eudes apenas pendeu para o lado. Com dois filhos para criar, ele foi surpreendido pelos 14 tiros de três suspeitos que estavam "de cara limpa". As marcas do terror ficaram na memória da esposa, que presenciou o crime.

Cinco disparos efetuados pelos assassinos atingiram o rosto; quatro, o abdômen; dois, o braço; um, a orelha; um, a perna; e outro, o saco escrotal. O tiroteio impossibilitou a defesa da vítima. O Diário do Nordeste teve acesso ao relatório final do crime, assinado pelo delegado do 16º DP (Castelão), Sylvio Rego de Rangel Moreira. As investigações policiais apontaram que João Eudes foi confundido com o cunhado do suposto líder do tráfico de drogas da região.

O engano teria ocorrido por dois pontos principais: o verdadeiro alvo frequentava o bar até cerca de um mês antes do assassinato; e os veículos dele e de João Eudes eram de mesmo modelo e cor - Peugeot 206 preto. Testemunhas afirmaram, em depoimento à Divisão de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP), que Eudes até passou um tempo sem andar no automóvel por medo de ser confundido com o outro homem. No entanto, o pior aconteceu para o despachante.

Celular

No dia seguinte à morte de Eudes, um celular que viria a mostrar provas da participação de diversos homens que já estavam envolvidos na Chacina das Cajazeiras foi apreendido por policiais do 16º DP, na posse de Ruan Dantas da Silva, vulgo 'RD' ou 'PH' - indiciado no caso das mortes múltiplas e preso em Beberibe, em abril deste ano.

No smartphone, diversos diálogos mostraram como a quadrilha planejou o massacre no 'Forró do Gago' e sugeriram que a ordem teria partido da alta cúpula da GDE; e também continha conversas sobre o homicídio no bar, ocorrido dias depois.

"Ei, se inteira: o André (nome fictício utilizado pela reportagem), o André pilantra, né? Cunhado do Anderson (também nome fictício) tá assistindo o jogo do Fortaleza ali de bobeira. Bora, bora matar, botar a balaclava e bora, bora matar esse bicho, bora, bora, cuida", escreveu Ruan, em uma rede social, em conversa com o também indiciado pela Chacina, Francisco Kelson do Nascimento, conhecido como 'Susto' ou '9MM'.

Em seguida, Francisco Kelson teria falado com o líder do tráfico na comunidade da Rosalina, Zaqueu Oliveira da Silva, o 'H20' ou 'Macumbeiro', que teria confirmado a filiação de André à facção inimiga. Então, Kelson manda Ruan arranjar uma motocicleta para matar o rival, com a aprovação de Zaqueu. "É pra matar o cara num é pra deixar o cara correr não viu, PH", escreveu Kelson. Antes, Ruan teria de pegar uma balaclava e uma arma de fogo na casa do mandante.

Em conversa com Fernando Alves de Santana - o 'Baiano' ou 'Robin Hood' -, Ruan o convida para participar da ação: "Ei, o André, o André, tá de bobeira ali no bar, assistindo o jogo do Fortaleza, bora cuidar, quebrar ele, rumbora", digitou.

Fernando, contudo, diz estar com o rosto queimado. O acidente teria ocorrido durante o incêndio do carro utilizado na 'Chacina das Cajazeiras'. O bando ateou fogo no veículo no dia anterior ao assassinato do despachante de veículos.

Em tom de satisfação pela "missão cumprida", Ruan aparece comemorando a morte do suposto inimigo com Kelson, na rede social: "Foi sal meu fi, tá doido é NOOOOVE nois é o crime, mah. Só na cara!!!".

Confusão

Apenas no dia seguinte, surgiram as informações de que o homicídio havia sido cometido contra a pessoa errada. Francisco Leudo Augusto da Silveira, o 'Cileudo' - suposto líder da GDE na região do Jardim União e monitorado pela Secretaria da Justiça e Cidadania (Sejus) através de uma tornozeleira eletrônica - reclama de Ruan pelo equívoco e afirma que aquilo não pode voltar a se repetir, porque "no crime, cada reação tem uma reação".

Assim como 'Cileudo', Zaqueu também é padrinho de Ruan Dantas e, por causa da morte de João Eudes, fez críticas ao apadrinhado. "Já basta aquela mancada, né mah? Vou falar com o Cileudo aqui, já, já, porque mostraram as foto errada, mah", escreveu.

Inquérito

As provas levantadas pela Polícia Civil levaram ao indiciamento de oito pessoas envolvidas direta ou indiretamente na morte do despachante do Detran. Francisco Leudo e Zaqueu Oliveira foram considerados mandantes da morte de João Eudes; Ruan Dantas, Fernando Alves e Joel Anastácio de Freitas, o 'Gaspar', seriam os autores diretos. Francisco Kelson, um adolescente de 17 anos e Valney da Silva Gomes foram considerados partícipes, por terem ajudado com informações e equipamentos para o cometimento do crime.

No relatório final do inquérito, os investigadores argumentam que Ruan Dantas e Joel Anastácio foram reconhecidos por testemunhas do homicídio. Além disso, a Perícia Forense do Ceará (Pefoce) demonstrou, em laudo, que havia correspondência entre os projéteis que vitimaram João Eudes e a arma de fogo apreendida com Kelson.

Todos os indiciados negam participação no crime, conforme depoimentos prestados à Polícia Civil. Ruan disse que não é membro da GDE e alguém o colocou nos grupos relacionados à facção, nas redes sociais. Segundo ele, o crime teve autorização de Zaqueu e foi cometido apenas por Fernando Alves, Joel Anastácio e um homem com a alcunha de 'Victor Lorim', e a informação errada teria sido dada por uma pessoa chamada de 'Juninho da 10', o qual teria sido expulso da Rosalina como retaliação.

'Cileudo' afirmou que "nunca matou nenhuma mosca" e não é integrante de organização criminosa e alegou que trabalhava como soldador e tinha se afastado de qualquer atividade ilícita. Já Zaqueu se negou a prestar depoimento sem a presença da sua advogada. Valney Gomes confirmou que estava em um veículo próximo ao bar, no momento da ação, mas negou ter participado do crime.

Os investigadores também colheram depoimentos de André e Anderson, supostos alvos e desafetos da GDE. O primeiro informou não ser envolvido com drogas ou facções criminosas e desconhecer qualquer ameaça de morte. Já o segundo assumiu ser faccionado do CV, mas explicou que teria entrado na organização após saber das ameaças de morte. Anderson também era frequentador do 'Forró do Gago'.

Os destaques das últimas 24h resumidos em até 8 minutos de leitura.