Sobral mantém a tradição de doces portugueses centenários

De geração em geração, os deliciosos fartes e queijadas seguem adoçando o paladar das pessoas

Escrito por Marcelino Junior - Colaborador ,
Legenda: Os fartes de Sobral são recheados com gengibre e castanha de caju
Foto: Fotos: Marcelino Júnior

Sobral. É com cuidado que José Roberto de Mesquita, 50, acomoda vários doces em uma velha assadeira para levá-los ao forno a lenha. Com movimentos leves, aos poucos, a mão experiente encaixa cada guloseima no espaço reservado a ela, que vai ficando cada vez mais apertado para tanta doçura. De repente, a assadeira passa da mesa direto para o fogo, para descansar ali por cerca de 20 minutos, envolvida pelo calor das chamas que vão ajudar a transformar aqueles pequenos círculos de massa e recheio em um dos doces mais tradicionais deste Município do Norte do Ceará: a queijada.

A iguaria atravessou, não apenas o oceano, trazida pelos portugueses que se estabeleceram na região de Sobral, como também os séculos, chegando ao nosso tempo com a receita simples, passada de geração em geração. No caso de seu José Roberto, os segredos foram divididos pela mãe dele, após aprender o passo a passo e acompanhar na cozinha, por muito tempo dona Semires Nascimento, a neta de escravos que deixou com a mãe do confeiteiro seu legado, após sua morte, aos 103 anos.

Confeitaria

Em casa, Roberto Mesquita foi o único dos seis irmãos a se interessar pelo universo da culinária, acompanhando a mãe, desde muito jovem, pelas aventuras diárias entre formas, assadeiras, fogão a lenha, tradição mantida até hoje, e as muitas receitas traduzidas em gostosuras, além da queijada, como os sequilhos, o pão de ló e o bombocado, um daqueles doces que dá vontade de comer aos montes, em formato de pequeno bolo, que acompanha o café da manhã ou mesmo o lanche da tarde.

A vida difícil e a falta de oportunidades deram ao hoje orgulhoso confeiteiro, apenas duas escolhas de sobrevivência na juventude: os doces, ou seguir a profissão do pai, pedreiro que sustentou de sol a sol a família numerosa.

"Eu nem pensei duas vezes, pois, logo nos primeiros contatos, senti que tinha a tendência à cozinha. Eu achava mágica a transformação daqueles ingredientes todos em comida, em algo que nos dá sustento; e, sendo doce, então, me realizava mais ainda. E, assim como minha madrinha, a dona Semires, e minha mãe, eu também criei meus três filhos e me estabeleci na vida como confeiteiro", conta emocionado, ao mostrar a casa, construída no Mumbaba de Baixo, distrito de Masssapê, onde ele mora com a família há alguns anos. "São apenas 8 quilômetros até Sobral, onde nasci e tenho minha maior clientela", explica.

Ingredientes

Característica de algumas regiões portuguesas da Ilha da Madeira, dos Açores, e das cidades de Sintra, Oeiras e Évora, a queijada é um pequeno doce confeccionado com farinha de trigo, coco, açúcar, manteiga, ovos, creme de leite e leite condensado - que antes da industrialização, era obtido a partir do açúcar apurado misturado ao leite.

O trabalho na cozinha de seu José Roberto, na feitura desse tipo de doce é todo artesanal, e começa cedo, ao preparar a massa e os demais ingredientes. Os pequenos detalhes que finalizam e dão um toque especial às bordas de cada unidade, são feitos com ajuda da mulher, Elenilse Lopes, 49, que está ao seu lado há 27 anos. "Quando nos conhecemos, ele já fazia os doces com a mãe dele. Nós criamos nossa família com ajuda desses doces, além de construirmos nossa casa. Já temos uma clientela fiel e não faltam encomendas. Eu adoro estar nesse ambiente, porque também ocupa o tempo, além da renda", diz dona Elenilse, enquanto fecha mais uma leva de doces.

Fartes

Outra delícia da tradicional culinária portuguesa preparada pelo seu José Roberto são os fartes, primeiros doces a aportarem no Brasil, entre os alimentos trazidos à nova terra. Esse doce, que conta um pouquinho da história da culinária brasileira, também é bastante apreciado em Sobral. E, de acordo com o renomado chef cearense Fernando Barroso, ao falar da iguaria em seu blog sobre doces, "a massa fina e elegante e o recheio de gengibre e castanha de caju credenciam os fartes a assumirem simbolicamente um papel de relevo na gastronomia cearense: a de serem o nosso 'petit four', aqueles mimos presentes em praticamente todas as culturas, servidos para acompanhar o café ou chá, durante as visitas", atesta o profissional.

Tradição

De acordo com obras sobre o assunto mantidas na biblioteca de Nápoles, na Itália, a receita, datada de 1600, descreve o doce como uma massa dobrada com amêndoas, canela e cravo, unida pelo miolo de pão. As mudanças de ingredientes ocorreram no Ceará, com a colocação das castanhas de caju no lugar das amêndoas, e a substituição do miolo de pão pela farinha de mandioca. A introdução do coco e do gengibre, aliados ao acréscimo de açúcar polvilhado, ao fim do preparo, deram um sabor diferenciado ao produto, um dos mais comercializados pelo seu José Roberto.

"Os doces são muito requisitados em festas, além do comércio em geral, que mantém uma produção regular por toda a semana", comemora o confeiteiro, que só lamenta não poder passar o que aprendeu adiante aos filhos. "Infelizmente, nenhum deles se interessou em seguir com essa tradição que levarei comigo", reflete um pouco, enquanto prepara mais uma fornada e idealiza: "Um dia, talvez, os netos possam se apaixonar pelos fartes e queijadas, assim como eu me apaixonei um dia, e adocem a vida deles e das pessoas. É assim que eu imagino".