Romaria da Santa Cruz do Deserto reúne cultura e fé

O local pode se tornar uma Unidade de Conservação e um geossítio administrado pelo Geopark Araripe

Escrito por Antonio Rodrigues - Colaborador ,
Legenda: O Caldeirão da Santa Cruz do Deserto fica entre os distritos de Monte Alverne e Dom Quintino. Foi abrigo de centenas de flagelados da seca que encontraram na comunidade alimentação, trabalho e refúgio espiritual
Foto: FOTO: ANTONIO RODRIGUES

Crato. Memória, fé, preservação, cultura e resistência. A 19ª Romaria da Santa Cruz do Deserto reuniu mais de 3 mil pessoas, na manhã desse domingo (23), na comunidade histórica do Caldeirão, construída pelo beato José Lourenço, que foi destruída pelo Governo Federal em 1937. Com o tema "Camponeses em defesa da vida e dos direitos", o evento, que se tornou tradicional, aconteceu mesmo sob sol forte, com a acolhida seguida de missa e apresentações culturais.

A Romaria da Santa Cruz do Deserto, criada no ano 2000, surgiu para celebrar a passagem do milênio. Através de uma comissão criada pela Pastoral da Terra junto com as entidade eclesiais de base, o evento foi pensado para resgatar a história da comunidade "de certa forma abafada", conta o padre Vileci Vidal. Através de filmes, artigos e pesquisas, o grupo achou o momento ideal de incluir na programação da Diocese de Crato. Na época, 150 pessoas celebraram a missa. "As pessoas foram criando gosto, as estradas sendo abertas e a gente conseguiu com que todos anos celebrasse. A cada ano tem aumentado".

O evento se manifesta de várias formas. Muitas pessoas são movidas pela fé, pois acreditam que o local, que pertenceu ao Padre Cícero, também foi um importante reduto espiritual. Outros veem a romaria como uma manifestação de memória pela comunidade massacrada, mas, também, de resistência, nos discursos pelo direito à terra e em prol da agroecologia, defendidos pelos movimentos sociais.

Além disso, se caracteriza pelo cuidado ao meio ambiente, com a simbólica plantação de mudas. Por fim, também se identifica como festa pelas diversas barracas e comerciantes vendendo bebidas, comidas, rosários, terços e brinquedos.

Segundo o padre Vileci, o tema da romaria tem ligação com o lema da Campanha da Fraternidade: "Fraternidade e superação da violência", definida pela Conferência Nacional dos Bispos (CNBB). "A gente tem percebido que, em 2016, aumentou o conflito no campo em 15%. É necessário que se traga essa reflexão para discutir na romaria, construir uma cultura, que vai se estabelecer na convivência com o Semiárido, sem agressão ao meio ambiente, resgatando a organização que existia no passado", acredita o sacerdote.

No dia anterior, José Procópio e alguns amigos já saíram de casa a cavalo, do bairro da Batateira, em Crato, para uma fazenda próxima ao Caldeirão da Santa Cruz. Hoje, às 4h, o grupo já estava de pé para começar mais uma cavalgada à romaria - tradição que vem crescendo ao longo dos anos.

"É a fé que a gente tem. É cansativo, mas vale a pena. Isso se tornou uma tradição. Começa com pouca gente e, quando olhamos, está como um formigueiro", brinca. Cerca de 200 vaqueiros participaram do evento, trazendo à frente a imagem de Nossa Senhora Aparecida.

"A religiosidade popular está na alma do povo. Ela marca um sentimento cultural muito forte. Há muitos grupos de resistência, como os Aniceto, o reisado e os vaqueiros têm aparecido na romaria para mostrar essa cultura nordestina. A alma da nossa gente é vaqueira. É da resistência. Essa cultura, que parece que está ausente, de repente você vê numa romaria, e aqueles que tem cavalos vão se juntando e assumindo essa condição de vaqueiros para dar sentido à vida no sertão. É clima, resistência, cultura, festa, manifestação, reza, romaria. Por isso, ela tem dado certo e a cada dia tem assumido com muita gratidão essa espiritualidade", descreve Vileci.

O secretário de Cultura do Crato, Wilton Dedê, acredita que a romaria é importante, principalmente, para que a história da comunidade do Caldeirão se mantenha viva na mente das pessoas como uma experiência exitosa. "Foi algo raro. A primeira e única experiência que deu certo. Aqui era autossustentável. Só iam para a cidade buscar alguma coisa que não se plantava como sal, querosene. O resto tudo era fabricado aqui", destaca.

Por esta valorização história, desde a década de 1980 se discute o tombamento do Caldeirão da Santa Cruz do Deserto pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Em nível estadual, isso foi conquistado. No entanto, o órgão vinculado ao Ministério da Cultura optou pelo não reconhecimento em âmbito federal.

"A Secult está reunindo documento para reabrir esse processo. Já visitei duas vezes o IPHAN e tive a orientação para isso", antecipa Dedê. Por outro lado, desde o início de 2017, o local tem sido estudado para se tornar uma Unidade de Conservação e, em seguida, um geossítio administrado pelo Geopark Araripe.

O Caldeirão

Localizada a 33 km da sede do Município de Crato, o Caldeirão da Santa Cruz do Deserto fica entre os distritos de Monte Alverne e Dom Quintino. Foi abrigo de centenas de flagelados da seca, devotos do Padre Cícero, que encontraram na comunidade alimentação, trabalho e refúgio espiritual. Sob a liderança do beato José Lourenço, cerca de 1.700 pessoas moraram ali, dividindo tarefas, fabricando instrumentos de trabalho, roupas e produzindo alimento.

Temendo que a comunidade se tornasse um movimento messiânico, o Governo Federal, em 1937, ordenou que as Forças Armadas e a Polícia Militar do Ceará invadissem o local. Muitos moradores do Caldeirão foram mortos e os sobreviventes foram expulsos de suas terras. O beato José Lourenço e seus seguidores fugiram. Até hoje, muitos corpos não foram encontrados e não há registro oficial do número exato de vítimas.