Pesquisadores assumem a responsabilidade do acolhimento

A falta de prioridade na vigilância em saúde no País para a doença de Chagas faz com que os centros de estudo exerçam outras funções com as próprias mãos e bolsos. Neste último dia da série, o desafio é manter a evidência

Escrito por Melquíades Júnior , melquiades.junior@diariodonordeste.com.br
Legenda: Preparação do barro para construção em Limoeiro do Norte (CE). As precárias casas de barro ainda são uma realidade não somente nos sertões como ao redor de grandes centros urbanos do País
Foto: Fotos: Melquíades Junior

Único com laboratório público para acompanhamento efetivo de pacientes chagásicos de todo o Ceará, o curso de Farmácia da Universidade Federal (UFC) inventa orçamento com 'vaquinha' entre os pesquisadores para custear exames e manter a busca ativa de novos diagnósticos no Estado.

- Professora, a senhora sabe que horas chegaram aqui na escola?

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Estão na comunidade de Várzea do Cobra, em Limoeiro do Norte, onde o aumento no número de pessoas diagnosticadas com Chagas mexeu de uma forma diferente. Alguns têm morrido, e os que vivem misturam o medo de morrer com a saudade de quem foi: pai, mãe, avô, vizinho. Saber da doença tem a validade de um tratamento.

- Desde meia noite.

- Não acredito!

Após três horas que separam Fortaleza de Limoeiro do Norte, Fátima Oliveira se espanta com a notícia, enquanto segura as fichas com as pessoas que farão dois exames para descobrir se estão infectadas: Elisa (sorológico) e imunofluorescência (confirmatório).

Quando a Secretaria Municipal de Saúde avisou que "amanhã tem exame", a partir de 8h, Tereza Leitão escalou-se para uma resposta: pediu ao sobrinho que lhe guardasse um lugar na fila ao menos até amanhecer.

Com o dia claro, Fátima organiza os tubos e agulhas. Não conta, mas sabe que trouxe muitos. Em parte, comprados do próprio bolso.

- Avisei antes que chamassem até 100 pessoas. Nada não, vamos atender aqui até onde puder.

Além da academia

Professora do curso de Farmácia da Universidade Federal do Ceará (UFC), Fátima faz de "até onde puder" uma sina há mais de duas décadas. A busca ativa, realizada em Limoeiro no mês de agosto de 2018, se assemelha a de 2011, quando esteve pela primeira vez na cidade. De lá pra cá, houve redução, mas resistência, de residências de taipa nas comunidades. Conforme o IBGE, o município tinha 200 casas de taipa em 2010.

O secretário municipal de Saúde, Júnior Ibiapina, ficou espantado com uma realidade tão interna dos diagnósticos locais da doença. "Não sabia que era tão sério, um assunto que estava adormecido". O tema volta, então, à pauta.

Mas ainda há um agravante pouco elucidado: palhoças, cercas de carnaúba, construções de tijolo cheias de frestas também abrigam o barbeiro. Pior: outros mamíferos infectados pelo inseto também podem ser hospedeiros do trypanosoma cruzi. Entra em cena a rede possível para o atendimento dos infectados.

"Se não fosse através da parceria com o Hospital Universitário, seria até dois meses para marcar consulta com cardiologista", lembra Fátima.

A pesquisadora sabe da dificuldade dos pacientes saírem de suas cidades para consultas e medicamentos.

Falta dinheiro também na Farmácia, e fazer uma cota "entre colegas" é uma forma de não deixar o trabalho parar, tamanha a responsabilidade: é o serviço público de saúde mais efetivo para acolher plenamente os pacientes com doença de Chagas no Ceará.

Durante reunião envolvendo Ministério da Saúde e Governo do Ceará, a pesquisadora falou do problema da falta de kits para novos diagnósticos. O Laboratório Central de Saúde Pública (Lacen), vinculado à Secretaria Estadual de Saúde, prometeu dois kits por mês, mas ocorreu de forma esporádica. Da última vez, o material foi entregue próximo ao prazo de vencimento. As equipes fizeram mutirão no laboratório para aproveitar tudo. O Ministério da Saúde não estaria repassando para o Lacen.

"Uma de nossas ações é gerar dados. A gente indica as regiões com maior risco de transmissão para que o gestor vá para o foco do barbeiro", explica Daniele Queiroz, coordenadora da Vigilância em Saúde do Ceará. A falta de uma sorologia preventiva pega muita gente de surpresa. Apenas no Hemoce, cerca de 25 pessoas por ano descobrem estar infectadas quando fariam a doação de sangue.

O laboratório, na UFC, com porta aberta toda semana para visitantes do Interior, transformou-se, com o Hospital Universitário, no avesso do calvário da saúde pública no Brasil: acolhimento.

Foi o sentimento de Dedé Bessa, 40 anos de idade e um de diagnóstico, cuja história contamos no primeiro dia desta série: "as meninas tratam a gente tão bem, olham pra gente. Dizem umas palavras que chega conforta. Você chega com um sentimento, sai de lá com outro, mais confiante".

Alunas de Fátima, como Alanna, Mylena, Vanessa e Arduína entenderam o que é não parar. A doutoranda Alanna Costa foi uma grata surpresa. Natural de Limoeiro do Norte, região endêmica, veio na forma de acolhedora.

Enquanto isso, o cheiro asséptico do laboratório de Farmácia se mistura ao de sertão trazido pelos visitantes. "Eles pagam qualquer esforço. Quando chegam aqui, desejam mil e uma coisas boas pra gente, isso é tão bom", celebra Fátima.

Cuidar

O retorno do acolher mexeu muito com sua vida alguns anos atrás. Um aluno avisou que havia uma mãe e uma criança do lado de fora querendo lhe falar. "Meu Deus, logo agora?". Não era dia de atendimento e já estava quase na hora de uma reunião na reitoria da Universidade, que fica em outro bairro. "Vou me atrasar".

Não era Chagas. A menina, aparentando dez anos, tinha uma doença que afetava o desenvolvimento. Alguém informou à mãe que a professora Fátima poderia ajudar. Segurou na mão das duas e saiu com pressa, puxando as duas para outro tempo, um que coubesse não perder a reunião com os superiores. Chegou à ouvidoria do hospital, explicou o caso, que hoje não recorda, mas foi ponte para aquela criança e a mãe: "minha filha, faça alguma coisa por essa menina". E correu.

Um mês depois daquele instante, em 24 de outubro de 2011, recebe uma correspondência. A vida corrida, de estudos, pesquisas, alunos entrando e saindo a todo instante do laboratório, mal dá tempo para amenidades, e aquela carta, que não dizia respeito a trabalho, soava estranha para ser. Quando pega com os olhos e as mãos, a revelação: era a menina Ivna Mayra com a mãe, vindo ali para agradecer. "Meu Deus, mas de quê? Não me custou nada. Só as levei até onde queriam. Eu estava atrapalhada porque tinha que sair?". Não importa, e vem outra constatação: poderia ter dito não, mas disse sim. Ouviu a mãe, pegou na mão da criança. Criou um outro destino para as duas. Era uma criança em linhas tortas dizendo muito obrigado, que estava feliz, pois tinha melhorado. Fátima chorou, e chora até hoje. Guarda a carta como um título, entre os muitos que tem.

Dar e receber

"Eu falo muito para meus alunos: é por isso que vale a pena viver. Quando você faz alguma coisa por alguém está ajudando mais a você que ao outro. E o trabalho não é de um só. É de todos. Ninguém deve estar nesse mundo para derrubar o outro. Deus põe as coisas, e as pessoas, na nossa vida pra gente ser melhor".

O Laboratório de Chagas completa 16 anos neste dezembro de 2018. É composto por dez pesquisadores, entre graduandos, mestrandos e doutorandos. São os "meninos de Fátima". Além do desafio para manter o local e ter kits para exames, o grupo luta agora por patrocínio de alguma empresa e um médico gastroenterologista, um nutricionista e um psicólogo. Que atendam pacientes chagásicos com parasitos no intestino, melhorem a alimentação deles e, com a capacidade de ouvir, reforcem a autoestima de quem precisa viver, apesar do barbeiro. Por mais essa demanda, Fátima pretende lutar "até onde puder".

Legenda: Fátima Oliveira, com sua equipe, tem a sina de pesquisar e acolher

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