´Olhar de menino índio´ traz memórias dos Tapuia-Kariri

Escrito por Redação ,
Índio Tapuia-Kariri, em São Benedito, grava documentário com as lideranças

Fotografias produzidas pelos índios Tapeba, de Caucaia, e comunidade do assentamento Coqueirinho, em Beberibe, retratam as atividades culturais como valorização da autoestima e da própria história de luta. No topo, juventude Tapeba, seguida do artesanato e teatro Coqueirinho

Povos tradicionais tiveram a iniciativa de registrar as atividades e criar o seu próprio acervo documental FOTO: MELQUÍADES JÚNIOR

Atividades econômicas tradicionais, como a produção e venda de caju e as casas de farinha, são registradas pelos mais jovens do assentamento Coqueirinho. As imagens são expostas em eventos

São Benedito. "Silêncio, que já tá ligada". Era o aviso para mais uma gravação. "Quando comecei a entrar na mata, eu senti um arrepio muito grande. Subiu nas minhas pernas e foi até o meu cabelo. Quando eu sentia esse tipo de energia, era de felicidade. Hoje, o que eu senti aqui foi de tristeza. Porque eu tô vendo a nossa mata, em que eu nasci e me criei, sendo acabada. Está muito minúscula. Não era esse ´tamanhozinho´ que estamos vendo aqui hoje", afirma Otávio Cândido, índio Tapuia-Kariri, morador da Aldeia Gameleira, em São Benedito. Quem grava é Luís, uma das lideranças jovens da etnia.

Otávio continua: "quando você bebe água de uma cacimba, que ela seca, a gente sente tristeza, pois não tem como sobreviver daquela cacimba mais. Eu sinto tristeza quando eu entro na mata e não vejo uma caça passando perto de mim, não vejo cobras, uma ave passando lá por cima. Obrigado a vocês e a todos os parentes que estão acompanhando essa entrevista. Que o Pai Tupã proteja e ilumine cada um Tapuia-Kariri e todas as aldeias em que ainda tem índio lutando pela natureza, pela Mãe Terra".

Era o fim de mais um depoimento colhido pelos jovens índios com as lideranças atuais e históricas da etnia que, como todas as outras no Ceará, luta pelo reconhecimento.

Capacitação

Desde 2005, algumas oficinas tem sido realizadas nas aldeias indígenas de forma a capacitá-los para o uso das ferramentas de vídeo e fotografia. O mesmo acontece com comunidades tradicionais de assentamentos rurais. Uma das principais iniciativas foi o cineclube indígena "Olhar Tremembé", no distrito de Almofala, município de Itarema. Foi lá que nasceu o "Olhar de menino índio", repercutido em trabalhos por outras aldeias da região norte do Ceará.

A intenção era tornar os índios protagonistas das produções, afinal, conforme o cacique Daniel Pitaguary, "pra valorizar o índio tem que ser outro índio", diz o líder da aldeia no município de Maracanaú.

A inserção dos índios nos trabalhos audiovisuais teve início com o próprio começo das organizações coletivas com a finalidade de reivindicar direitos.

Em 1985, foi realizado o documentário "Tapeba: resgate e memória de uma tribo", do cineasta Eusélio Oliveira. Oito anos depois, o cineasta Rosemberg Cariry gravou duas peças da "Campanha pela demarcação das terras indígenas no Ceará", a pedido da Associação Missão Tremembé (Amit). Um ano depois, era registrado nas fitas VHS a Primeira Assembleia dos Povos Indígenas do Ceará, na Aldeia Poranga, em Crateús. Além de depoimentos de índios participantes do evento - realizado anualmente, a presença de uma figura indigenista histórica na luta de afirma: Maria Amélia Leite, da Missão Tremembé.

Em 1995, o vídeo "Tapeba, povo massacrado" trazia mais denúncias de poluição dos rios e devastação das florestas. E seguiram-se outras, abordando questionamentos levantados pelas diversas etnias. Reportagens de televisão também constituem importante acervo, ainda que não reproduzam o olhar indígena.

Cineclubes

"As produções, quando feitas pelos próprios povos tradicionais, tem a intenção de tirar rótulos, desmistificar e dar a oportunidade de o índio falar sob sua própria visão", afirma Alberto Cukier, que atua com cineclubes em aldeias indígenas - bem como no documentário "Olhar de menino índio". Para este, partiparam 24 jovens, dos quais sete foram selecionados para produzir as imagens, conversando com as lideranças, as pessoas mais antigas. O trabalho teve o apoio do Conselho Indígena Tremembé de Almofala (Cita).

A produção audiovisual por parte dos índios do Ceará é, em verdade, ferramenta evidente de um trabalho ainda mais amplo, realizado por meio da disseminação de saberes e fazeres indígenas. É o protagonismo, agora, das escolas diferenciadas e, nelas, os professores da própria comunidade, como verdadeiros semeadores do conhecimento tradicional local.

O trabalho evoluiu de tal forma que o Ceará foi o pioneiro no Nordeste, na criação de um curso superior voltado para essas etnias. O Curso de Magistério Indígena Tremembé Superior (Mits), criado por iniciativa dos próprios índios Tremembé do distrito de Almofala, em Itarema, Zona Norte do Estado.

Pedagogia

A ideia foi dos Tremembé. As lideranças da aldeia entendiam que, por meio da educação, os valores culturais e sociais seriam transmitidos, ou melhor, mantidos pelas outras gerações. Mas há um obstáculo: o professor orientado nos bancos da pedagogia tradicional - com algumas exceções, carregada de "vícios coloniais" - não trazia as ferramentas necessárias para a manutenção dos saberes e fazeres. Foi aí que os índios de Almofala, com apoio de pesquisadores das próprias universidades, deram início à formação docente, embora já fossem professores nas escolas diferenciadas.

"Foi o único curso no País criado dentro de uma aldeia indígena, comemora o professor doutor Babi Fonteles, pesquisador e coordenador acadêmico do curso que acompanha há muitos anos a luta dos povos indígenas pelo reconhecimento. "Os Trabalhos de Conclusão de Curso (TCC) produzidos pelos concludentes do Curso de Magistério Indígena Tremembé Superior (MITS) são uma expressão bem importante da relevância deste Curso e uma referência para estudos sobre algumas temáticas da cultura Tremembé", explica Babi Fonteles.

Sustentabilidade

Comunidades tradicionais beirando o mar do Ceará entendem o turismo como grande fonte de renda e uma das principais ferramentas de atração a esses lugares. Mas isso não quer dizer que possa ser de qualquer forma. Foi quando decidiram resistir às expulsões causadas pela especulação imobiliária que perceberam a vez de "gritar" para o mundo a própria existência. Gritos por meio do artesanato, da agroecologia, das plantas medicinais, culinária tradicional e, juntando tudo isso, por meio do "turismo sustentável".

É assim no Coqueirinho, como em tantos outros. Mas é lá, no litoral do município de Beberibe, que está um dos maiores núcleos audiovisuais. Em miúdos: jovens capacitados em oficinas, com câmeras de vídeo e fotográficas na mão, registram todos os eventos e movimentos da comunidade. É uma celebração diária de uma conquista que "não foi fácil": a conquista do território onde vivem e praticam o turismo ecológico. O protagonismo da comunidade teve o apoio do Projeto Arte e Cultura na Reforma Agrária, realizado pelo Incra no Estado do Ceará.

MELQUÍADES JÚNIOR
REPÓRTER

OPINIÃO DO ESPECIALISTA

Processo de ressignificação

Durante o curso de Mestrado em Sociologia na Universidade Federal do Ceará (UFC), cataloguei 40 produções videográficas realizadas entre os anos de 1985 e 2013 e oficinas de vídeo em comunidades indígenas no Ceará. No contexto brasileiro, as primeiras iniciativas de utilização de suportes videográficos junto a populações indígenas foram realizadas, principalmente, em virtude da construção de grandes empreendimentos governamentais em áreas indígenas, tais como hidrelétricas e rodovias. A partir dos anos 70, algumas ONGs e cineastas discutiram, através da imagem, os diversos impactos socioculturais dessas obras na vida dos índios. Nesse sentido, grupos indígenas como os Kayapó e os Xavante, no Norte do País, foram contactados por essas instituições e cineastas com o objetivo de levar a tecnologia videográfica como instrumento que daria a oportunidade de voz aos indígenas brasileiros.

Ao longo da pesquisa, notei marcantes diferenças no contexto de apropriação e nos usos da tecnologia videográfica entre os povos indígenas mencionados acima e os povos indígenas no Estado do Ceará. Lá fora, não se tratava da necessidade urgente de lhes conferir reconhecimento étnico ou afirmação identitária, mas sim de contrapor projetos políticos que iriam atingir diretamente suas terras, causando diversos impactos ambientais, econômicos e socioculturais. No caso dos índios no Ceará, as primeiras iniciativas buscavam conferir aos índios reconhecimento étnico, sendo necessário lhes proporcionar visibilidade e sentimento de pertença a uma etnia a partir de uma reconstituição histórica.

A potencialização desses trabalhos nas redes sociais contribui ainda mais nesse processo de ressignificações.

Gabriel Andrade
Publicitário e Mestre em Sociologia