Fé no Padre Cícero transforma Juazeiro em um grande santuário

Entre os principais nomes de devoção do cearense, ocupando o quarto lugar, segundo o Instituto Opnus, "Padim", como é carinhosamente chamado pelos romeiros, é um fenômeno que ultrapassa os dogmas da Igreja Católica

Escrito por Antônio Rodrigues , regiao@verdesmares.com.br

Nas paredes das casas, na barraca do vendedor ambulante ou na porta de cada loja. A figura do Padre Cícero está presente em todos os lugares de Juazeiro do Norte. Até as grandes redes nacionais do comércio, quando desembarcam na cidade, aderem ao costume de colocar um símbolo do sacerdote eu seu estabelecimento. Hoje, somente nas próprias igrejas o “padrinho” não está presente, pelo menos, nos altares. “Terra de oração e trabalho”, a fé se confunde com o crescimento econômico e urbano que o Município teve nas últimas décadas.  
 
Antes de se tornar terra de “trabalho”, Juazeiro do Norte primeiro foi lugar de “oração”. E isso está em cada local da cidade, onde romeiros espontaneamente criam seus “rituais” e manifestam sua devoção ao Padre Cícero. No Santuário dos Franciscanos, por exemplo, o ônibus que traz os visitantes costumar dar três voltas buzinando ao redor da estátua de São Francisco. Cada giro é um agradecimento ao “Pai”, “Filho” e “Espírito Santo”. É uma espécie de saudação a terra que consideram santa. Um costume inexplicável. “O romeiro santifica Juazeiro”, justifica o frei Raimundo Barbosa.  
 
No mesmo Santuário dos Franciscanos, outra tradição é fazer o “passeio das almas”, percurso de cerca de 300 metros, no largo da Paróquia. Além disso, a água de uma gruta, atrás da Igreja, é tida como benta e os fiéis carregam consigo para sua casa. Já na Colina do Horto, os romeiros costumam dar sete voltas ao redor do cajado da estátua do Padre Cícero para fazer pedidos ao santo. “É também um momento de agradecimento. Aprendi com meus pais”, explica a agricultura Juliana Santos, romeira de Coruripe (AL). 
 
Cerca de 3 quilômetros da estátua, fica o Santo Sepulcro, que se tornou um pequeno santuário em meio as pedras. Os romeiros acreditam que este foi o local escolhido pelo Padre Cícero para seu retiro espiritual. Lá, é muito visitado, principalmente, na sexta-feira da Paixão, onde o devoto se espreme em meio as rochas para tentar se “purificar”. Dizem que os mais pecadores não conseguem ultrapassar. Ainda a Colina do Horto, fica o Museu Vivo do Padre Cícero, que recebe, diariamente, incontáveis itens como ex-votos, fotografias e camisas, frutos de graças alcançadas. 
 

"O romeiro não fica em um só espaço, ele percorre toda cidade" Padre Cícero José Pároco "Sempre vai ter alguém ajoelhando, rezando, acendendo uma vela" Amanda Teixeira Historiadora


Na Casa de Milagres, no Largo da Capela do Socorro, e a Casa Museu, onde morou o Padre Cícero, também são deixadas diversas lembranças por causa de promessas. O próprio túmulo do sacerdote também é alvo de devoção. “O romeiro não fica em um só espaço, ele percorre toda cidade. A cidade é tida como um lugar sagrado. Hoje, a fé se estende para outras igrejas”, descreve padre Cícero José da Silva, pároco da Basílica de Nossa Senhora das Dores.  
 
Para o sacerdote, os fenômenos das romarias para Juazeiro do Norte agora são fenômenos permanentes, que acontecem ao longo do ano e que cresce ainda mais porque na cidade os fiéis se sentem acolhidos. Ele também acredita que estes locais se tornaram centros de visitação, porque o romeiro gosta de vivenciar a experiência de percorrer o caminho que o fundador da cidade fez e isso se repete a cada romaria. “É um reabastecimento de sua fé”, acrescenta Padre Cícero José. 

Primeiras romarias

No entanto, antes de santificar vários locais, o alvo das primeiras romarias para Juazeiro do Norte foi a casa da beata Maria da Araújo, que já não existe mais. Lá, eram venerados os lenços sujos de sangue frutos do “Milagre da Hóstia”, registrado pela primeira vez em 1886, na atual Basílica de Nossa Senhora das Dores. Contudo, por proibição da Igreja Católica, houve uma tentativa de esquecimento da personagem e do próprio fenômeno.  
 
O Padre Cícero negou que os fenômenos fossem “embuste” e esteve ao lado de Maria de Araújo, que foi condenada a reclusão em 1894 e assim permaneceu até sua morte, em 17 de janeiro de 1914. Mesmo sem poder ser vista ou mencionada, Juazeiro do Norte continuou recebendo pessoas para visitar a protagonista do “milagre”. Foi aí que o sacerdote despista a Igreja criando a Romaria de Nossa Senhora das Dores. “Ele dizia que os romeiros vinham por causa da padroeira”, conta a historiadora Edianne Nobre.  
 
O corpo de Maria de Araújo foi colocado na Capela do Socorro, onde hoje está sepultado o sacerdote, porém, em 1930, seu túmulo foi destruído e seus restos mortais roubados. Até o crime acontecer, ele ainda era local de devoção, onde muitos fiéis deixavam flores e acendiam velas. Hoje, ninguém sabe o paradeiro da beata.  

Símbolos fabricados
 
Em 1925, foi inaugurada primeira escultura de Padre Cícero feita de bronze, erguida no centro da praça Almirante Alexandrino – atual Praça Padre Cícero. A obra foi encomendada por Floro Bartolomeu a Laurindo Ramos, escultor do Rio de Janeiro. A ideia do médico e amigo do sacerdote era mostrar combater os discursos de cidade “fanática” e “atrasada”, reproduzidas nos jornais da época, para uma cidade “ordeira”, representando o “progresso”.  

Em 2015, o Papa Francisco reconheceu o afeto popular que cerca a figura do Padre Cícero

 

Coberto com uma toga romana, debaixo do sol, sem proteção, o monumento representa o “homem político” que foi o sacerdote, primeiro prefeito de Juazeiro do Norte. Muitos romeiros sequer reconhecem o “santo” pela imagem que ela representa. Por isso, ela não foi cultuada como a estátua de gesso feita entre 1934 e 1940, erguida no Largo da Capela do Socorro. Criada pelo escultor Agostinho Balmes Odício, a obra em tamanho real, colorida, impressionava os devotos após a morte do “padim”.  
 
“Muitos chegavam na oficina de Odísio e se ajoelhavam diante das estátuas que ele fazia: ‘Como pode um homem que nunca viu o Padre Cícero fazer ele tão bem-feito? Só pode ser santidade’”, narra a historiadora Amanda Teixeira. Até a inauguração da estátua na Colina do Horto, em 1969, a obra do escultor italiano foi o principal alvo de devoção e cartão-postal da cidade. 
 
“Certamente sempre vai ter alguém ajoelhando, rezando, acendendo uma vela lá. As pessoas que vinham para as romarias, visitava o túmulo e depois praticavam sua devoção ali, diante da estátua, como praticam até hoje”, explica Amanda. O próprio juazeirense Sebastião João dos Santos, mesmo debaixo de sol forte, se ajoelhou embaixo da peça e rezou. Segundo ele, isso é uma prática aprendida com pais, romeiros de Alagoas, por isso, o costume permanece. “Padre Cícero é tudo. Basta dizer isso”, resume. 
 
No dia 1º de novembro de 1969, com forte presença de romeiros por conta da Romaria de Finados, é inaugurada a estátua do Padre Cícero na Colina do Horto. O monumento de 27 metros de altura surge da revolta popular porque o prefeito da época, Mauro Sampaio, destruiu o popular “pé de tambor” - Timbaúba -, para construir uma antena de televisão. Para os moradores, a árvore era o local de meditação do “padrinho”. Naquele momento, o sinônimo de “progresso” foi confrontado com a fé e isso gerou comoção na cidade.  
 
“As pessoas não se conformaram. A ideia (de construir a estátua) foi boa pois substituiu um símbolo por outro. Quando é construída, ele tenta passar a ideia de uma intenção turística. Inclusive, Mauro Sampaio diz que o setor hoteleiro deveria atentar para isso, porque Juazeiro não tinha bons hotéis. Mas, em geral, se acreditava que haveria devoção”, conta Amanda. O horto acabou se tornando as duas coisas: turismo e fé. “Por mais modernas que sejam, as pessoas ressignificam tudo. A fé é muito dinâmica. Vão construindo com os espaços e coisas, fugindo da racionalidade, de qualquer teoria”, justifica Amanda.   
 
“Hoje, os romeiros visitam outros espaços, cidades vizinhas, mas não tira o encontro com os lugares onde Padre Cícero passou. Penso que essa espacialidade dos lugares deve ser preservada, mas devemos estar abertos para o que quer surge como novo”, acredita Padre Cícero José. Para ele, os ritos criados em Juazeiro do Norte são inexplicáveis. “O contato com Deus não se explica, se vive”, acrescenta.  
 
O aposentado Geraldo Amorim, romeiro de Ponto Novo (BA), visita Juazeiro do Norte duas vezes por ano, desde 1963. A viagem começou com seus pais, através de graças alcançadas pela sua família. Hoje, ele traz seus filhos para sentir de perto a presença do santo popular. “A gente tem aquela gratidão a tudo que Padre Cícero fez no mundo e faz pela gente. Ele tudo. Representa todos os santos”, acredita. 

Histórico

1889 Durante a comunhão da beata Maria de Araújo a hóstia verte sangue. O suposto milagre começa a atrair romeiros

1894 O Vaticano considera que houve fraude e reprova os fatos em Juazeiro como "gravíssima e detestável irreverência e ímpio abuso à Santíssima Eucaristia"

1897 Padre Cícero recebe a portaria de excomunhão caso não se retire de Juazeiro

1898 Padre Cícero apresenta sua defesa e é absolvido das censuras. No entanto, fica proibido de falar ou escrever sobre o "milagre da hóstia"

1922 Pedido de reabilitação de Padre Cícero é negado pelo Papa Leão XIII

2001 É criada uma comissão para estudar os fatos de Juazeiro

2006 O resultado da análise é entregue ao Santo Ofício com uma petição assinada por 254 bispos para a reabilitação de Padre Cícero

2015 O Secretário de Estado do Vaticano assina a carta de "reconciliação histórica da Igreja com o Padre Cícero"

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