Etnias indígenas ainda lutam pelo reconhecimento

Escrito por Redação ,
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Reportagem especial sobre índios no Ceará revela que as etnias ainda lutam por questões elementares à cidadania

Poranga. A velha e única explicação plausível para dizer que não existe índio no Ceará é o fato de que os nativos que aqui habitavam quando da invasão dos portugueses só passaram a se chamar índios porque, pensando estar na Índia, Cabral e seus subordinados assim chamavam esses povos. Jenipapo-Kanindé, Anacé, Kariri, Pitaguary, Potiguara, Tabajara, Tapeba, Tupiba/ Tapuia e Tremembé. Todas essas etnias estão espalhadas pelo Ceará, mas habituadas à expressão índio, apesar do nome ter sido dado pelo branco colonizador.

Mais fortes que no passado (não o passado distante em que viviam livremente, antes dos colonizadores), as etnias indígenas do Ceará lutam pelo reconhecimento cultural, pela reafirmação da autenticidade e a demarcação de suas terras, conquistas lentamente obtidas nas últimas décadas. Como o primeiro jornal a acompanhar os dias da Assembléia dos Povos Indígenas do Ceará, evento único no Nordeste, o Diário do Nordeste traz, a partir de hoje, uma série de reportagens sobre os índios do Ceará, brasileiros que ainda buscam reconhecimento de direitos.

Enquanto o leitor confere esta matéria, centenas de representantes de etnias indígenas no Ceará estão reunidas debaixo de um frondoso cajueiro. Cocá na cabeça, maracá na mão, rosto pintado ou nada disso adornando o corpo, mas “é índio do mesmo jeito”, afirmou a Cacique Pequena, dos Jenipapo-Kanindé (Aquiraz), orgulhosa de dizer que é a primeira mulher cacique do Brasil. Os índios estão na Aldeia Cajueiro, em Poranga, município cearense na divisa com o Piauí. De Fortaleza até lá são 382 quilômetros de estrada e outros 38 quilômetros subindo e descendo serra por entre pedras nas estradas carroçáveis. Leva-se até duas horas e meia para percorrer o último “pequeno” trecho.

Os índios retornam, 14 anos depois, para o lugar onde ocorreu o primeiro grande encontro indígena no Ceará, em 1994. Nesse ínterim, muitos nasceram, outros morreram, algumas terras foram reconhecidas, demarcadas, e uma pequena leva de poderosos inimigos foi encontrada pelo caminho — aqueles que, para não perderem as terras que já foram adquiridas de forma duvidosa, negam a existência do índio, para, daí, renegar seus direitos constitucionais. A principal pedra no caminho dos índios chama-se dinheiro e poder. Antes, as “pedrinhas” são medo e morte ao assumir a identidade. “A gente sabia o que era, mas num podia dizer, pra não sofrer, aí chamavam a gente de ‘os cabeludos da Encantada’”, explica Cacique Pequena, dos índios jenipapo-kanindé que vivem no entorno da Lagoa Encantada, município de Aquiraz.

Oportunidade
“Mas o que me deixa feliz é que aqui a gente pode andar à vontade. Lá na minha comunidade seu eu aparecer pintada é arriscado jogarem uma pedra em mim. O preconceito ainda é muito grande”, esclarece a professora Andréa Rufino, 26 anos, presidente da Associação Indígena Tapuia Kariri, de São Benedito. Andréa e outra professora, Luana Gomes, representam a aldeia (300 famílias, das quais apenas 39 admitem ser índios) no encontro dos povos indígenas. Como em raras vezes podem fazer, pintaram-se com a tinta extraída do jenipapo e, com os outros, dançou o toré, a dança sagrada dos índios. Com alegria, e sem medo de que pedra fosse jogada, nem mesmo a do preconceito.

O medo de dizer que é índio ainda cala muitos povos, “mas tem aumentado o engajamento, a gente percebe que algumas pessoas vêm pela primeira vez, vêem os índios falando de direito, de reconhecimento, e passam a fazer parte do movimento”, comenta a antropóloga Joceny Pinheiro, há mais de 10 anos acompanhando o movimento dos índios no Ceará e doutoranda em Antropologia Social com Mídia Visual, pela Universidade de Manchester, Inglaterra. Os pesquisadores acadêmicos — notadamente antropólogos — são importantes aliados da causa indígena. Identificados com a luta desses povos (a primeira começa entre estes próprios, pela superação do medo e o auto-reconhecimento), militam no Ceará antropólogos como Joceny, também Max Maranhão, Gerson Oliveira, Isabelle Braz, Sérgio Brissac e Kleber Saraiva, dentre outros, a maioria discente na Universidade Federal do Ceará (UFC) ou na Universidade Estadual do Ceará (Uece).

Vem dos anos 80 o período de mais crescente discussão e mobilização sobre etnicidade no Ceará, no campo acadêmico, mas principalmente nas terras indígenas, muitas ainda hoje cobiçadas por grandes grupos empresariais.

Com os Tapeba (Caucaia), Tremembé (Itarema), Pitaguary (Pacatuba) e Jenipapo-Kanindé (Aquiraz), a luta indígena ganha corpo, e o que estava “entalado” por várias gerações ressona como um grande grito de resistência: “Eu sou índio!”.

A desconstrução do mito e o reconhecimento étnico-cultural ficam evidentes em jovens como João Neto, 14 anos, da etnia Tapeba, da cidade de Caucaia. O jovem cresceu sabendo ser índio. À sombra do cajueiro da aldeia, pôs seu cocá, vestiu-se de natureza (as peças são feitas de pena e palha), pintou o rosto, os braços, deixou os olhos brilharem e, com outras dezenas, assumiu seu posto na dança toré, ao som de tambô, macará, mas, principalmente, das vozes uníssonas: “Ô, desenrole essa corrente/ Ô, deixe o índio trabalhar...”.

Melquíades Júnior
Colaborador


SAIBA MAIS

Concentrações

A Coordenação dos Povos Indígenas do Ceará (Copice) têm registradas 12 concentrações de etnias indígenas no Ceará: Tapeba (Caucaia), Tremembé (Acaraú, Itarema e Itapipoca), Pitaguary (Maracanaú e Pacatuba), Jenipapo-Kanindé (Aquiraz), Kanindé (Canindé e Aratuba), Potiguara (Tamboril, Crateús, Monsenhor Tabosa e Novo Oriente), Tabajara (Monsenhor Tabosa, Crateús, Tamboril, Poranga e Quiteranópolis), Kalabaça (Crateús e Poranga), Kariri (Crateús), Anacé (São Gonçalo do Amarante e Caucaia), Gavião (Monsenhor Tabosa) e Tubiba-Tapuia (Monsenhor Tabosa). O número pode ser maior, na medida em que ocorrem os processos de auto-reconhecimento dos povos indígenas.

Migração
A capitania do Siará-Grande abrigou mais de 20 etnias, sendo considerada por muitos como um refúgio para onde migraram diversos povos, que vieram das capitanias vizinhas de Rio-Grande, Paraíba, Pernambuco, e ocuparam parte desta terra, que já era habitada por outros povos. O Siará-Grande só começou a ser invadido pelos europeus efetivamente no início do século XVII.

Fonte: Coordenação dos Povos Indígenas do Ceará (Copice)

CADASTRO
22 mil índios é o número de cadastro realizado pela Fundação Nacional do Índio (Funai) no Estado do Ceará no ano de 2008

Mais informações:
XIV Assembléia Estadual dos Povos Indígenas do Ceará, Coordenação das Organizações dos Povos Indígenas do Ceará, (85) 3481.7009

LIDERANÇAS NA ALDEIA

Assembléia torna-se fórum de discussão dos povos
Poranga. Quando começou, em 1994, também neste município, a Assembléia dos Povos Indígenas não tinha metade da representação de hoje. Hoje são 12 etnias do Ceará, em diferentes estágios de identificação. Algumas só reconhecidas (por parte dos próprios índios), outras já também demarcadas e, assim, já admitidas e reconhecidas pelos órgãos públicos, privados (com sérias exceções) e pelas comunidades de não-índios. O evento é de reafirmação da identidade, assegurada enquanto se reivindicam os direitos para todos os povos.

“Não é só uma assembléia, é um fórum de discussão”, afirma Dourado Tapeba, vice-coordenador da Articulação dos Povos Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme). “A gente precisa saber quem realmente está nessa luta”, completa. “Tem liderança que se diz liderança, mas será que está fazendo o seu papel?”, reclama Ceiça Pitaguary, de Maracanaú. Ainda cobrou a participação de todos na produção e consumo de produtos agroecológicos, pela “natureza limpa”. Ceiça representa os povos indígenas do Ceará na sede da Apoinme em Olinda (PE). Acontecendo desde segunda-feira passada até o próximo sábado, a XIV Assembléia Estadual dos Povos Indígenas do Ceará inicia, pelas manhãs, com ritos, celebrações e a dança toré, da qual participam todas as etnias, pedindo benção ao Deus-pai Tupã, para “iluminar” as discussões. “O lema é nossa terra, nossa vida”. Num dia fala-se da terra, noutro da saúde, seguido da educação, e outras discussões que surgem a partir das primeiras pautas, terminando com a elaboração de propostas para 2009, mas não sem antes reclamar ou agradecer pelo que foi reivindicado para 2008.

O principal gargalo da saúde, verificada nas aldeias, é o saneamento

Na educação, por exemplo, haviam proposto o concurso público para professores indígenas, sugestão já acolhida pela Funai e pela Secretaria de Educação do Estado.

“A questão agora é outra, que é saber a forma como esse processo de magistério está se dando, se os índios estão sendo ouvidos”, afirmou Rosa, da Coordenação dos Povos Indígenas do Estado do Ceará (Copice) e da Associação das Mulheres Indígenas do Ceará (Amice). As mulheres têm um papel forte de liderança dentro da organização dos movimentos e na elaboração de políticas públicas de educação.

O principal gargalo da saúde é o saneamento. E logo no primeiro dia da encontro, a falta d’ água na comunidade fez homens deslocarem-se quilômetros para conseguir água potável para abastecimento de mais de 250 pessoas. A bomba hidráulica instalada foi promessa da Fundação Nacional de Saúde (Funasa) para antes de começar o evento. A instalação foi resolvida de última hora por agentes da Funai, que apóia o evento. Apesar de convidada a participar, até ontem não havia nenhum representante da Funasa nas discussões.