Devoção de fiéis confirma crença no mito religioso

Escrito por Redação ,
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Tianguá. Por toda cidade, pelo menos 15 lojas trazem no letreiro de sua fachada o nome de Francisca Carla. São farmácia, churrascaria, livraria, funerária, cemitério, lava-jato, mercadinho, entre outros. Claudiohelder Cardoso Vasconcelos, 44 anos, diz ter sido o pioneiro neste tipo de homenagem. Ele é o proprietário da loja Francisca Carla Presentes. “Foi eu o primeiro a usar o nome de Francisca Carla, daí surgiram outras pessoas que resolveram também prestar homenagem de forma mais visível”, comenta Vasconcelos, acrescentando que sua sogra Teresinha Lima, já falecida, chegou a dar comida para Francisca Carla. “Ela nos contava que, antes de morrer, Francisca Carla já não andava mais, ela se arrastava para pegar a comida”, disse, emocionado.

Antes mesmo da notícia dos primeiros milagres, as pessoas seguiam rumo à capela de Francisca Carla para rezar e acender velas para sua alma, talvez também pagar promessas e confortarem seus espíritos. Nos fins de semana e Dia de Finados, o contigente, embora menor em proporção, lembra as romarias à Juazeiro do Norte e Canindé. As pessoas levando comida, água e até roupas, simbolizando saciar a fome e a sede que a enferma passou durante seu estado de agonia. No local onde foi erguido a capelinha, e que até pouco tempo guardava os restos mortais de Francisca Carla, é o mesmo local onde foi construído o casebre para abrigar a doente. Lá estão guardados os ex-votos. São partes do corpo humano feito de madeira tais como: cabeça, pés, mãos, seios, muletas que simbolizam a cura das diversas enfermidades.

Pagamento de promessas

Está presente no imaginário dos devotos trocas simbólicas, e essas oferendas são atribuições dadas pelas pessoas que alcançaram graças. Outros objetos como: fotografias, imagens de santos, coroas de flores, ou pequenas declarações em cadernos também simbolizam o pagamento de promessas à Francisca Carla. “Peço alcançar a graça para comprar um terreno para fazer um comércio e conseguir o comércio e também um transporte para eu deixar de trabalhar para os outros. Peço que seja atendido os meus pedido. Obrigado – 27/12/98. Peço muita saúde e que meu marido deixe de beber”, declara uma das várias mensagens escritas em um dos cadernos.

O público crente de Francisca Carla não se limita apenas a pessoas humildes e pobres. A dimensão é muito maior, a fé não tem classe social. As promessas feitas pelos fiéis são em sua grande maioria para alcançar a cura de doenças, esse é um fator preponderante nas classes mais pobres. Já para a elite, além de pedir a cura de enfermidades, há também o pedido de prosperar em termos financeiros em sua vida. Mas essas duas formas de veneração são distintas, pois, todas as duas têm, em comum, a intermediação dos santos, seja para qual for o fim.

A Igreja Católica não tem uma posição formada sobre esta religiosidade atribuída à Francisca Carla. Monsenhor Tibúrcio Gonçalves de Paula, da Diocese de Tianguá, em entrevista ao Diário do Nordeste, edição de 8 de outubro de 1998, disse que “a Igreja aceita sim a devoção dos fiéis. Do lado devocionista aceita mas procura fazer um trabalho de orientação às pessoas e conduzir aquela fé, tendo uma solidez e não ficando mais para o lado apenas sentimental”.

Mas um fato acontecido no ano de 1998 mexeu com o lado sentimental desses devotos. Por autorização, segundo relato, da Diocese de Tianguá, os restos mortais de Francisca Carla foram trasladados da capela de Lagoa da Pedra para um cemitério novo inaugurado em novembro de 1999. A autorização, segundo se comenta, foi dada pelo monsenhor Tibúrcio Gonçalves de Paula. “Se foi dele a permissão para o acontecido não sei, mas se fez, fez preocupado com a segurança dos devotos. No meio da mata, se torna perigoso, ir lá para orar. Aqui neste cemitério é muito mais seguro”, disse padre Lusmar de Sousa Fontenele, pároco da Igreja N. S. Sant’Ana.

A justificativa não é aceita pelo produtor cultural Natal Portela. “A Igreja deveria ter consultado a população, talvez tenha feito isso para beneficiar o empresário. Vamos, após a exibição do filme, entrar numa briga, no bom sentido, para que os restos mortais voltem para a capela”, desabafou.

Neste período, para o Cemitério Francisca Carla, foi trasladado os restos mortais de frei Gervásio Micheles, que dedicou sua vida ao trabalho pastoral, onde foi professor no Centro Missionário. O sacerdote, depois de uma longa vivência em Tianguá, mudou-se para o município de Canindé, onde veio a falecer anos depois.

PRECONCEITO
Moradores doavam alimentos e água durante confinamento

Tianguá. O agricultor Manoel Carneiro Veras, 71 anos, viu na sua mocidade o sofrimento da jovem Francisca Carla. Ele relata que num dia de domingo, como era costume na cidade, o conterrâneo Joaquim Carlos recebia muitos convidados e como retribuição, mandava preparar um grande banquete. “Todos comiam e bebiam à vontade. Muitos paravam aqui voltando da feira semanal de Tianguá. Quando foi um certo dia sobrou muita comida. Achei estranho. Depois disso, como eu era muito amigo da família, seu Joaquim Carlos me falou que Francisca Carla estava doente e que não podia receber visita”, relembra Manoel Veras.

Ele conta que Joaquim Carlos, com ajuda de moradores, construiu uma casinha de taipa para Francisca Carla morar. Depois, eles ergueram uma segunda casa e queimaram a primeira. Fizeram uma terceira casa, esta no caminho para Tianguá. “Foi a partir daí que eu voltei a vê-la. Todos os domingos de madrugada, a gente saia para Tianguá e na ida deixava uma cabaça com água e na volta deixava comida”, conta o agricultor Manoel.

Manoel Veras disse que eram poucas as pessoas que chegavam perto da casa. “Um leão é um bicho feroz, mas a gente tem coragem de olhar para ele. Francisca Carla, o povo tinha medo”. Até que um certo dia, quando ia para cidade, notou que a comida que havia sido colocada lá, lá estava. “Foi aí que seu Joaquim Carlos entrou na casa e encontrou ela morta, o corpo estava caído em cima de um feixe de lenha”, disse, acrescentando que o sepultamento dela foi preparado pela sua mãe, Antônia Xavier. Depois de enterrada, a casa onde foi a última morada foi derrubada e não queimada como as outras.

Robson Fonteneles de Paulo, aluno da Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA), descreve em sua monografia — “Francisca Carla, o imaginário popular sobre sua santificação” — o que tanto o impressionou: “é que ela (Francisca Carla), antes de ser confinada, esteve numa situação sem ter para onde ir nem aonde ficar. Como se fosse um ser sobrenatural. Podendo tornar-se invisível, diante das exigências preocupantes que desses momentos angustiantes já lhe acompanhava”, descreve Robson.

Sepultamento

Se consideramos que Joaquim Carlos só visitava o local no domingo, provavelmente Francisca Carla tenha falecido mesmo no dia 23 de abril, pois esse dia caiu naquele ano de 1953, numa quinta-feira. “Nesse período de três dias, algumas pessoas passantes e aqueles que sempre deixavam alimentação no pé da faveira notaram que a comida continuava no lugar sem ser tocada. A porta do casebre continuava fechada, demonstrando que algo mais estranho poderia ter ocorrido. Alguém quis ver de perto o que teria acontecido. Era o senhor Francisco Alexandre, a primeira pessoa a tomar conhecimento de que Francisca Carla estava morta”, descreve Luiz Gonzaga Bezerra, no seu livro.

Confirmada a veracidade do fato, logo em seguida as pessoas da comunidade do Sítio Lagoa do Padre, tendo à frente a Antônia Xavier, Francisco Xavier e outros presentes procuram providenciar o sepultamento da conterrânea. Antônia Xavier determinou que fosse preparado o cadáver já em putrefação. “Ela vai ser enterrada como ser humano, deixem que eu cuido, vou dar um banho e visto a mortalha dela pronta para o enterro”, disse ela.

SAIBA MAIS

Instituição
O Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase (Morhan) é uma entidade sem fins lucrativos, fundada em 6 de junho de 1981, com sede administrativa no Rio de Janeiro, presente em aproximadamente 100 comunidades pelo Brasil.

Voluntário
O Morhan depende única e exclusivamente do trabalho voluntário de seus colaboradores. Não é uma entidade assistencial. O trabalho é feito por pacientes, ex-pacientes e pessoas interessadas no combate ao preconceito em torno da doença.

Trabalho
Sua atividade é dirigida a toda a sociedade. O Morhan faz, por meio de seus núcleos espalhados pelo País, eventos para combater o preconceito contra a hanseníase. Estas atividades são realizadas gratuitamente, sem ônus de qualquer espécie para o solicitante. Veiculando informações corretas através dos principais meios de comunicação do País.

WILSON GOMES
Colaborador