Rachel e o bispo

Nos inícios da década de 1970, Fortaleza foi palco de uma polêmica que envolveu o poder público e a Igreja Católica. Tratava-se da delicada questão da venda do Palácio do Bispo ao poder público municipal de Fortaleza. Dom José de Medeiros Delgado era acusado de concretizar a alienação da chácara residencial dos antigos bispos do Ceará, à revelia de pareceres contrários, tanto de especialistas, quanto de representantes de Movimentos Pastorais. Para muitos, seria mais pertinente a venda do Banco Popular, de propriedade da Igreja. Dom Delgado, na sua defesa, alegava que as despesas que envolviam a manutenção e as reformas internas do prédio, eram enormes. No mais, havia um problema de saneamento e urbanização, de canalização de águas e de proteção contra enchentes improvisadas do rio Pajeú, que a Arquidiocese jamais poderia resolver. A venda, também, segundo ele, justificava-se por uma causa nobre e inadiável: a necessidade de criação de um fundo de pensão para os padres do Ceará que, na velhice, não contavam com um mínimo de recursos para suas necessidades gerais.

Em março de 1973, Rachel de Queiroz escreveu artigo no jornal Tribuna do Ceará, sobre a questão da venda do Palácio do Bispo. Neste, comemora a compra que os jornais de Fortaleza anunciaram, feita pela Prefeitura, da "última grande área verde do centro urbano da capital cearense". A escritora se mostra saudosista, diante de uma Fortaleza que, no ano acima citado, estava beirando a faixa de um milhão de habitantes. Faz críticas à febre imobiliária que estava levando o governo e o povo a atacar os quintais das velhas residências do "Outeiro, Aldeiota (sic), Benfica, Alagadiço". Só a Universidade Federal havia consumido dezenas de chácaras no Benfica. Considerava um milagre a preservação do pequeno parque arborizado da Reitoria. Para a escritora, onde antes davam sombra centenárias mangueiras e cajueiros, ergueram-se prédios de tijolos com "suas estúpidas janelas de vidro basculante". Não era de admirar, portanto, que Fortaleza fosse para a escritora cearense, na década de 1970, uma das cidades mais quentes do Brasil. Na sua pena, Rachel vai descrevendo, o processo de transformação e de destruição dos espaços verdes da cidade:

Quando se acabaram os quintais, há uns vinte anos, o então poder público deu para atacar as praças, fez a Escola Normal na Praça do Pequeno Grande; e na velha Praça do Mercado ergueu no modernoso estilo "pó de pedra", o prédio dos Correios e Telégrafos; na Praça Fernandes Vieira o novo Liceu; na Praça dos Voluntários, o feiíssimo prédio da Polícia; para minha querida Praça de São Sebastião transferiram o velho Mercado de Ferro, atravancando-a, transformando-a numa pitoresca, mas suja e ruidosa feira-livre permanente. Na Praça do Colégio Militar fizeram um campo de esportes. Porém o crime maior e todos foi a liquidação da linda e veneranda Praça de Pelotas, depois da Praça da Bandeira, famosa por suas avenidas de antiquíssimas mungubeiras, botaram-se abaixo e ocuparam a área com dois prédios de faculdades. E parece que o ódio era contra as árvores porque, mesmo nos trechos não construídos, as mungubeiras foram abatidas.

Rachel de Queiroz, no desfecho de seu artigo, felicita, em primeiro lugar o prefeito Vicente Fialho pela aquisição. Em segundo, o amigo dom José de Medeiros Delgado, que renunciou às "doçuras idílicas de sua residência em benefício do povo da minha cidade", fazendo-se porta-voz de todos aqueles que haviam nascido na Ribeira do velho Pajeú. Não seria à toa, afirmava Rachel, portanto, que o arcebispo de Fortaleza era paraibano, raça de sertanejo quase "tão bom quanto a de cearense". Considerava que, a partir daquela ação, Dom Delgado deveria ser proclamado cearense, de uma vez por todas, com a licença, era claro, de Ariano Suassuna.


Márcio de Souza Porto - mestre em História Social