O fenecer da vida

A polidez é a origem das virtudes. Casaldáliga diz que a ternura é um quase sacramento. A ternura dignifica o nosso ser. Nos transpõe ao próprio Deus. Alaíde Bomfim, última neta de Alexandre Bonfim. Minha mãe está a se consumir. Fenece lentamente. Como uma rosa que se despede do dia esmagada, mas ainda deita a beleza do seu perfume. 102 anos, frágil, olhar vivo, mas distante, vai desenhando a própria fragilidade humana. Despida de vaidades. Estantes da alma limpas. Começo, dela sentir saudades. Tenho de recomeçar o meu caminho. Deus já me deu demais. A voz dos tempos me chama. Eu menino. Lembro-me da minha infância com Alaíde. A minha primavera que partiu para sempre. No final do dia, as luzes pálidas das ruas tristes e vazias, de Crateús. Ia com a minha mãe nas suas visitas diárias. Levar um feijão para um pobre da Ilha. Uma roupa para uma criança que havia nascido. Ir ao Barrocão visitar uma amiga moribunda. Levar a esperança da fé. A mesma face que doirava em riso. O mesmo riso que iluminava um dia. O antigo olhar de luz, que perdera a vida. Minhas mãos pequenas, meus passos miúdos iam com minha mãe no meio da noite pálida e escura, para um agonizante. Jogado num casebre feio e torto. Alaíde vinha com sua catequese simples. Sua teologia do chão a pregar o Sermão da Montanha para tantos. Foram tantos anos, que me fez apaixonar pelo ser humano. Foi o meu primeiro seminário. Foi minha faculdade de medicina familiar. Um dia de madrugada, Alaíde foi me deixar na base aérea para eu ir para o seminário. Pensei um dia fazer aquelas trilhas sagradas que eu criança fazia com minha mãe. Alaíde foi uma mestra de felicidade. Professora da alegria. Tirou a palmatória. Ensinava com enternecimento. Corrigia com caridade. Em Carpina esperava uma carta de minha mãe. Os dias passavam e nada.

Num dia, o diretor do seminário me entrega uma carta. Era de minha mãe. Comecei a ler e chorar. Uma saudade, numa linguagem transparente e meiga. À medida que lia, as lágrimas brotavam em cascatas. De repente, a tinta da carta se desfez e de tanta emoção não consegui ler a carta que eu sonhava como brisas suspirosas. Passados os anos, percorrido tantos caminhos, vejo minha mãe fenecendo como pétalas de rosas no fim do dia. Hoje as mesmas lágrimas. O mesmo amor. A mesma saudade e ternura.

José Maria Bonfim de Morais. Médico cardiologista