Lei interpretativa

Adolescente, cuja mãe está viajando, fixa na porta de seu quarto a mensagem: “Proibido mexer em minhas coisas sem autorização"

Ante a riqueza do vocabulário, uma mesma lei pode ser entendida de formas diferentes. Para evitar insegurança quanto aos efeitos de sua incidência, pode-se editar uma outra a fim de interpretá-la. Trata-se da chamada lei ou norma interpretativa que, em outros termos, esclarece o que já era possível apreender. E exatamente por não criar significado novo - e, com isso, situação nova -, mas por somente apontar um dos já vários possíveis como sendo o significado mais correto, a norma interpretativa pode ter efeitos retroativos, sem contrariar o princípio de justiça segundo o qual lei nova não retroage.

Podem ser colocadas, porém, algumas questões relativas à norma interpretativa: será que, mesmo depois de já se haver firmado no meio jurídico entendimento claro sobre o sentido de determinada norma, pode vir uma outra e se auto-intitular “interpretativa”, com efeitos retroativos? E mais, quem tem competência para, em último caso, afirmar sobre a interpretação correta de uma norma?

Consideremos exemplo não jurídico para facilitar a compreensão e a utilidade desses questionamentos, e, ainda, a conclusão quanto a suas possíveis respostas.

Adolescente, cuja mãe está viajando, fixa na porta de seu quarto a mensagem: “Proibido mexer em minhas coisas sem autorização”. Ao sair para ir ao colégio, olha para a senhora que cuida da limpeza da casa, e diz tchau, sem mais nada lhe dizer. Como ele passa o dia fora, dita senhora fica na dúvida se entra para fazer a limpeza do quarto muito sujo. E não entra, até que a mãe do garoto liga para casa e, nessa oportunidade, afirma à senhora da limpeza: “É claro que você pode entrar. Quando ele afirmou ser proibido mexer nas coisas dele, certamente não se referia à sua limpeza. Até porque ele sabe que quero tudo organizado. Talvez apenas não quisesse que os irmãos menores bisbilhotassem. Entre, sob minha responsabilidade”. O quarto é então organizado. Ao saber do ocorrido, o garoto se enfurece, mas não diz nada. E a senhora da limpeza continua a agir da mesma forma. Após três dias, porém, fixa nova mensagem com a seguinte redação: “Proibido entrar sem minha autorização. Para fins de interpretação, afirmo que a proibição é dirigida a todas as pessoas, sendo proibido fazer a limpeza”. Após, demite a senhora da faxina, afirmando que ela “desobecera suas ordens”.

Instintivamente, sem considerar qualquer doutrina sobre norma interpretativa, surge o seguinte questionamento: será que se pode considerar correta a demissão da senhora da limpeza, sob o fundamento de que descumprira a proibição? Ante o esclarecimento prestado pela mãe, a quem compete dizer o que é finalmente certo ou errado em casa, e ainda diante da dúvida quanto ao conteúdo da primeira proibição, será que o garoto agiu corretamente ao querer fazer retroagir a sua suposta norma “esclarecedora”?

Ora, a segunda norma, apesar de, num sentido muitíssimo amplo e vulgar, poder ser chamada interpretativa, como pretendeu o garoto, na verdade, não interpreta a anterior, mas é sim norma nova. Só teria sentido falar de norma interpretativa, para fins de trazer segurança quanto aos efeitos de sua incidência - como deve ser uma norma dessa naturza -, até o momento no qual quem tinha o poder para dizer em último caso o significado da norma ainda não tivesse se pronunciado - no exemplo, a mãe. Como esta, porém, já havia explicado à senhora da faxina o significado que entendia correto da norma, é mais do que razoável que a nova proibição do menino só possa ter efeitos a partir de sua edição. O que se pode interpretar dessa nova norma do garoto, portanto, é apenas que ele desrespeita sua mãe.

Pois bem. Assim como o caprichoso garoto quis tornar sem efeito as palavras da mãe, desmoralizando-a, e ainda fazendo retroagir injustamente a segunda norma que estabeleceu, o Fisco conseguiu recentemente aprovar norma alterando interpretação já pacífica do Superior Tribunal de Justiça sobre o direito do contribuinte de obter a devolução de tributos pagos indevidamente. Inseriu um artigo no CTN e nele fez constar que se trata de mera norma “interpretativa” dos artigos que já tratavam desse prazo, tudo com a finalidade de fazer retroagir a alteração.

É evidente, porém, que não se trata de norma interpretativa. Somente se poderia cogitar de norma dessa natureza, para fins de aceitar sua retroação, até o momento em que o STJ não tivesse pacificado o entendimento sobre o assunto. Mas se isso já havia ocorrido, a auto-intitulada norma interpretativa, em outros termos, torna sem efeito os pronunciamentos do STJ sobre a matéria, como se não fosse ele o órgão responsável para, em último caso, interpretar a legislação federal.

É justo e razoável, portanto, o entendimento de que essa nova norma do CTN (art. 191-A, § 3º) não retroage. É, ainda, uma lição, para que o Fisco não se ache no poder de alterar a natureza normas, e tornar sem efeito os pronunciamentos do Judiciário. Agora, pelo tratamento dispensado pelo Fisco ao Poder Judiciário, a quem deve se submeter, já se pode imaginar como é o dado aos contribuintes, que a ele estão submetidos.