José Martins Rodrigues e o silêncio jurídico

José Martins Rodrigues nasceu em Quixadá, no ano de 1901, abrindo os seus olhos para o futuro junto com o século XX, inaugurando aquela que seria a centúria mais curta da história, no dizer de Eric Hobsbawm (1917-2012), sacudida, desde o seu início, por sangrentas guerras e revoluções localizadas; Zémartins, como era conhecido dos seus contemporâneos, foi um intelectual atuante e decisivo, ingressando na Academia Cearense de Letras em 1930, com apenas 29 anos de idade, um dos acadêmicos que mais jovem obteve assento na ACL, talvez mesmo o mais jovem de todos, onde ocupou a Cadeira no. 36; no ano de 1934, conquistou a Cátedera de Direito Civil da Faculdade de Direito do Ceará, aos 35 anos, com o portentoso estudo Efeitos Jurídicos do Silêncio, numa época em que esse evento (o silêncio) não era visto e nem considerado como juridicamente relevante, máxime para o fim de gerar obrigações na órbita civil. Naquela altura, como anota o Professor Ricardo Pereira Lima, da UERJ, o Código Civil, então vigente há somente 17 anos, (o Código Beviláqua, de 1916, que entrou em vigor em 1917) continha apenas duas disposições a respeito do silêncio: (i) a da prorrogação da relação locatícia se, findo o prazo contratual, o inquilino continuasse na posse do imóvel, e (ii) o da aceitação da doação sem encargo, se o donatário silenciasse, pelo prazo assinado pelo doador; o jurista José Martins Rodrigues, com a coragem impetuosa própria do seu espírito e o sentimento de renovação das coisas que o animaram até o fim de sua vida, em 1975, afrontou - esse é o termo - as lições estabelecidas e ousou afirmar que "todas as obrigações, como todas as relações de Direito, têm por fonte fatos jurídicos", com o que revolucionou o entendimento dominante de que "somente a lei é fonte de obrigações no domínio civil", incluindo o silêncio no rol dos acontecimentos (ou dos fatos).

Percebe-se que o Professor José Martins Rodrigues, com essa ideia, colocava o silêncio na classe ou na categoria dos fatos jurígenos, como que compelindo a lei a reconhecer-lhe a aptidão para gerar vínculos obrigacionais, abandonando, com notável antecipação histórica e científica, aquela resistente concepção de que a lei nasce da inspiração do legislador, para valer num mundo de abstrações e regularidades harmoniosas; pois, por incrível que pareça, esse meritoso trabalho do Professor José Martins Rodrigues ficou inédito por quase 80 anos - isso mesmo, quase 80 anos! - somente vindo a lume agora, em cuidadosa edição, com preciosa apresentação e breve resumo biográfico do autor, elaborados pelo insigne mestre Paulo Bonavides (Editora Malheiros, São Paulo, 2012).

A partir dessa sua pioneira proposição, o silêncio passou a ser estimado como produtor de efeitos no campo obrigacional, que constituindo, quer extinguindo direitos, e não apenas no ambiente do processo, como é da nossa tradição jurídica mais antiga, onde têm lugar institutos como a preclusão e, em outro sentido, a decadência e a prescrição, apesar dos seus inegáveis reflexos substantivos. Assinale-se que foi estranha ao espírito do Professor Zémartins Rodrigues a visão abstracionista do Direito em geral, e do Direito Civil em particular, pois avesso ao intelectualismo frio, distante ou desconectado dos problemas da vida humana prática, social e política, que era uma espécie de herança do iluminismo francês, que repontou na formação bacharelesca de notáveis juristas brasileiros, como aponta o Professor Nelson Saldanha, mostrando, porém, os que souberam evitar essa ardilosa e tentadora armadilha e, pioneiramente, denunciaram os formalismos que impunham a prevalência das teorias sobre os desafios da realidade. Mas o Professor Zémartins foi também jornalista hiperético, fundador de periódico em Fortaleza, advogado combativo e sempre brilhante, dono de uma oratória invejável, além de cultor aplicado do nosso idioma, que empregava ao estilo escorreitíssimo do celebrado jesuíta Padre Antônio Vieira (1608-1697), que não pedia pedindo, senão protestando e exigindo; foi um dos maiores políticos do velho PSD do Ceará e do Brasil, eleito Deputado Federal pelo nosso Estado, tendo sido cassado pelo AI 5, de 1968, que desencadeou as ondas de brutais perseguições a políticos honrados, como Zémartins; no entanto, a cassação do seu mandato não o silenciou, mas o moveu ao combate político no terreno democrático, que era o seu ambiente natural; o seu esforço cívico presenta-se na Constituição de 1988 e o Professor Paulo Bonavides diz que Zémartins é da estatura política e histórica de homens como Ulisses Guimarães, Mário Covas, Dom Hélder Câmara, Gofredo Telles Júnior e Dom Evaristo Arns, o que basta e sobra para evidenciar a importância desse nosso conterrâneo, cujo nome hoje batiza uma ponte no lado oeste de Fortaleza, fazendo o que ele fez em vida: unir e agregar, afastar distâncias, promover a comunhão social, lançançando sobre os enormes fossos sociais que nos isolam - e que isolam as nossas classes - lajões extensos de compreensão ampla e de concórdia permanente.

Se os juristas da atual geração se derem a oportunidade de ler e refletir sobre o pensamento do Professor José Martins Rodrigues, inclusive o exposto nessa sua tese, verão que o grande mestre civilista não nos deixou apenas o Professor Roberto Martins Rodrigues, seu filho, jurista completo, e o Professor Cabeto Martins Rodrigues, seu neto, cardiologista exímio e exponencial profissional e humanista na sua área, mas também uma contribuição clara, precisa e atual, no sentido mais perfeito dessas expressões, sobre a compreensão e a expansão do pensamento jurídico mais refinado. A disciplina Direito Civil, na Faculdade de Direito do Ceará, deveria chamar-se Professor José Martins Rodrigues.

Napoleão Nunes Maia Filho
Ministro do STJ