Editorial: Crime contra as mulheres

Na primeira quinzena do ano, o Ceará viveu dias atípicos e históricos no terreno da segurança pública. De um lado, mais de 200 ataques de grupos criminosos foram registrados no Estado; de outro, o número de homicídios caiu pela metade, se comparado a igual período do ano passado. A aparente contradição se explica, grosso modo, pela partilha de um alvo – a autoridade do Estado – por parte das facções criminosas; e, evidentemente, pela resposta ostensiva, ágil e vigorosa, coordenada pelo Governo cearense. 

No entanto, um crime registrado nesta semana destoa dessa trama e chama atenção para outras dimensões da violência e, consequentemente, desafios de alta complexidade que se impõem ao Estado e à sociedade. Uma vendedora foi morta, em seu local de trabalho, pelo ex-companheiro. Sem aceitar o fim do relacionamento, ele se insurgiu contra a liberdade dela, garantida pela Constituição Federal, recomendada pela Declaração Universal de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU). O crime foi cometido com uma arma de fogo roubada de uma delegacia e, infelizmente, está longe de poder ser visto como uma tragédia isolada.

De acordo com números parciais da Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS), projeta-se um crescimento de 25% no número de mulheres assassinadas, entre 2017 e 2018. O aumento impressiona ainda mais por se mostrar uma anomalia diante dos dados gerais. Pelo mesmo levantamento, o balanço total de assassinatos deve mostrar uma redução nos índices estaduais, quando comparados os dois anos.

Dentre as mortes violentas registradas até agora, 24 foram classificadas na categoria de feminicídio. Pela Lei nº 13.104, de 9 de março de 2015, é assim considerado todo assassinato quando ele se dá “contra a mulher por razões da condição de sexo feminino”. É possível que, quando consolidados os dados da SSPDS, este número seja ainda maior. 

Por este recorte, são considerados os crimes que se deram, especificamente, em contextos discriminatórios. Mas é preciso entender que os desvios – éticos, econômicos e culturais –, que levam a esta expressão extremada do preconceito contra as mulheres, também estão presentes como fatores que explicam o aumento dessas mortes. Exemplo disso são as mortes de envolvidas com tráfico e facções criminosas, quando tomadas como alvo de vinganças, para retaliação de bandidos rivais. 

O feminicídio é a expressão máxima e mortal das diversas violências cotidianas, que podem atingir as mulheres em sociedades marcadas pela desigualdade, por construções históricas, culturais, econômicas, políticas e sociais discriminatórias. Daí a dificuldade de combatê-lo apenas com medidas ostensivas. É necessário coibir as violências cotidianas, no espaço público e privado, antes que elas culminem em um ato bárbaro e irreversível.

Para tal, é importante, sim, a ação policial, mas também o olhar atento da sociedade para estas tendências nocivas, denunciando-as quando manifestas; e fazendo-as minguar como próprias dos costumes. Se faz imperativo a confluência de esforços, do Estado, das demais instituições e dos cidadãos, para reverter um quadro inaceitável para qualquer sociedade civilizada. 


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