‘‘Argumentos contra a guerra’’

O mais poderoso Estado na História proclamou que pretende controlar o mundo pela força, dimensão em que reina supremo. O presidente Bush e seu bando evidentemente acreditam que os meios da violência em suas mãos são tão extraordinários que eles podem dispensar com desprezo qualquer um que esteja em seu caminho. As conseqüências podem ser catastróficas no Iraque e no mundo. Os EUA podem colher um redemoinho de retaliação terrorista — e aproximar-se da possibilidade do armagedon nuclear. Bush, Cheney, Rumsfeld e companhia estão comprometidos com uma “ambição imperial”, como escreveu John Ikenberry — “um mundo unipolar no qual os EUA não têm qualquer adversário à altura” e no qual “nenhum Estado ou coalizão possa desafiá-los como líder global, protetor e que age pela força”.

A ambição com certeza inclui uma grande expansão do controle sobre os recursos do Golfo Pérsico e bases militares para impor uma forma preferida de ordem na região. Mesmo antes de o governo começar a bater os tambores de guerra, havia muitas advertências de que a aventura dos EUA levaria a uma proliferação das armas de destruição em massa, assim como do terror, por contenção ou vingança. Neste momento, Washington está ensinando ao mundo uma lição muito feia e perigosa: se você quer se defender de nós, é melhor imitar a Coréia do Norte e apresentar uma ameaça militar crível. Do contrário, vamos destruí-lo.

Há uma boa razão para crer que a guerra com o Iraque tem a intenção, em parte, de demonstrar o que vem pela frente quando o império decide dar um golpe — embora “guerra” dificilmente seja um termo adequado, considerando-se o desequilíbrio de forças. Um fluxo de propaganda adverte que se não pararmos Saddam hoje ele nos destruirá amanhã. Em outubro, quando o Congresso deu ao presidente autoridade para ir à guerra, era para “defender a segurança nacional dos EUA da contínua ameaça do Iraque”.

Mas nenhum país na vizinhança do Iraque parece preocupado demais com Saddam, por mais que o odeiem. Isso talvez porque os vizinhos sabem que o povo do Iraque vive no limite da sobrevivência. O Iraque tornou-se um dos Estados mais fracos da região. Como diz um relatório da Academia Americana de Artes e Ciências, as despesas de sua economia e suas forças são uma fração das de seus vizinhos, inclusive o Kuwait, com 10% da população do Iraque. Saddam se beneficiou do apoio dos EUA na guerra com o Irã e, depois, até o dia da invasão do Kuwait.

Os responsáveis estão de volta ao leme de Washington hoje. Reagan e o governo Bush anterior deram ajuda a Saddam, e meios para desenvolver armas de destruição em massa, quando ele era bem mais perigoso que agora e já havia cometido seus piores crimes, como matar milhares de curdos com gás venenoso. Um fim do regime de Saddam tiraria um fardo terrível do povo iraquiano. Há bons motivos para acreditar que ele sofreria o destino de Ceausescu e outros tiranos se a sociedade iraquiana não fosse devastada por sanções que forçam a população a depender de Saddam para sobreviver enquanto fortalecem a ele e a sua facção. Saddam continua sendo uma terrível ameaça para aqueles a seu alcance.

Hoje, seu alcance não se estende além de seus domínios, embora seja provável que uma agressão dos EUA inspire nova geração de terroristas inclinados à vingança, e induza o Iraque a ações terroristas que já se suspeita haver. No ano passado, uma força-tarefa comandada por Gary Hart e Warren Rudman preparou um relatório para o Conselho de Relações Exteriores, “EUA — ainda despreparados, ainda em perigo”. Adverte para ataques terroristas que poderiam ser bem piores que o 11 de Setembro, inclusive com uso de armas de destruição em massa no país, perigos que se tornam “mais urgentes com a possibilidade de os EUA irem à guerra contra o Iraque”.

Neste momento, Saddam tem todos os motivos para manter sob rígido controle quaisquer armas químicas e biológicas que possa ter. Ele não as entregaria para os Osamas bin Ladens do mundo, que representam uma terrível ameaça para o próprio Saddam, sem falar na reação diante de qualquer indício de que tal transação poderia ocorrer. E os falcões do governo entendem que, exceto como último recurso se for atacado, é altamente improvável que o Iraque use qualquer dessas armar — e que se arrisque a uma incineração imediata. Sob ataque, porém, a sociedade iraquiana sofreria um colapso, inclusive do controle sobre armas de destruição em massa. Estas poderiam ser privatizadas, e oferecidas ao enorme mercado de armas não convencionais, onde seriam vendidas com facilidade.

Quanto ao destino do povo do Iraque em guerra, ninguém pode prever com confiança: nem a CIA, nem Rumsfeld, nem aqueles que dizem ser especialistas em Iraque, ninguém. Mas as agências de ajuda internacionais se preparam para o pior. Estudos de organizações médicas estimam que o número de mortes pode chegar a centenas de milhares. Documentos confidenciais da ONU advertem que uma guerra poderia desencadear “uma emergência humanitária de escala excepcional” — incluindo a possibilidade de 30% das crianças iraquianas morrerem de subnutrição.

Hoje o governo não parece prestar atenção nas advertências das agências para as horrendas conseqüências de um ataque. Os desastres em potencial estão entre os muitos motivos pelos quais seres humanos decentes não consideram a ameaça do uso de violência, seja em sua vida pessoal ou em questões internacionais, a não ser que haja motivos com força decisiva. E certamente nada remotamente parecido com essa justificativa surgiu.

Noam Chomsky
Escritor norte-americano e lingüista do Instituto de Tecnologia de Massachusetts