"Cannes deixou de ser um evento sobre propaganda. É muito mais"

Os três publicitários que comandam a agência Delantero dividem aqui alguns insights sobre a ida deles a Cannes

Escrito por Valerya Abreu - Colunista ,
Legenda: Pádua Sampaio, Marcel Pinheiro e André Miyasaki, os sócios que comandam a agência Delantero

O tradicional Cannes Lions, o Festival Internacional de Criatividade de Cannes, realizado anualmente na França no mês de junho, é sem dúvida a grande e lendária vitrine da propaganda global. Há alguns anos, entretanto, o Festival expandiu sua já enorme fronteira e tornou-se uma arena onde outros temas correlatos à propaganda são discutidos por grandes experts. É para lá onde atenções e profissionais olham e rumam para buscar e ampliar a lente. Foi o que fizeram os sócios da agência cearense Delantero, que juntos contam e dividem aqui um pouco do que vivenciaram por lá.

Queria que vocês contassem um pouco sobre a experiência dos três de acompanhar o Festival de Cannes. O que de mais relevante chamou a atenção de vocês?

André Miyasaki: o Festival de Cannes é o maior festival de propaganda, inovação e criatividade do mundo e tem motivos de sobra pra isso. É um espaço onde se reúnem as melhores ideias, os melhores profissionais e as maiores marcas para apresentar e discutir o futuro da nossa profissão. São 5 dias muito intensos entre palestras, apresentações, premiações e troca de conhecimento com profissionais do mundo inteiro. De criativos da Índia a diretores de grandes empresas da América do Sul. Apesar da incrível diversidade, é muito interessante - e até reconfortante - perceber que os desafios são basicamente os mesmos. A propaganda lida com um público cada vez mais complexo e multifacetado e bem mais disperso. Em resumo, o festival nos dá pistas sobre como criar conexões fortes e relevantes entre marca e este novo tipo de consumidor.

Além da premiação, acredito que acompanhar as discussões e as principais temáticas tenha sido o mais significativo. Concordam?

André Miyasaki: Concordamos. Além de ser a mais importante e badalada premiação de publicidade e inovação, o Festival de Cannes é um espaço em que se discutem os assuntos mais relevantes para o futuro da nossa profissão. Os temas são os mais variados, desde a ética na inteligência artificial até discussões acerca de novos formatos do varejo. A participação dos três sócios no festival nos abre a oportunidade de assistir, simultaneamente, a vários painéis e debates diferentes. Assim, podemos absorver a essência de cada painel e trazer esse conhecimento. Já temos uma série de palestras agendadas para clientes e estudantes em que poderemos expor um pouco daquilo que melhor aconteceu no festival. A cultura do compartilhamento, afinal, é uma das tendências que vimos por lá.

O Festival costuma ser um grande fórum, uma mega- arena onde grandes nomes expõem ou debatem e muitos temas têm a oportunidade de serem tratados e percebidos, certo? Podem citar algum momento que tenha marcado mais de tão significativo que foi?

Marcel Pinheiro: Sim, tem razão. Além de tentar compreender as tendências, Cannes nos apresenta personalidades que dificilmente teríamos oportunidade de ver e ouvir falar em um outro festival. E ver grandes personalidades de perto é sempre marcante. Elas estão ali, em carne e osso, normalmente muito à vontade por estarem em um festival de propaganda. Neste sentido há dois momentos que podemos destacar. No primeiro, o grande astro da NBA, Shaquille O'Neal, falou sobre o processo de transformação do seu próprio nome em uma grande marca. "Shaq Ataq" é hoje uma marca forte no segmento de material esportivo. Um outro momento importante foi a participação da atriz Queen Latifah. Latifah contou sobre a difícil trajetória até o estrelato e assim conseguiu inspirar as centenas de pessoas que acompanhavam a palestra na plateia do Palais.

Na avaliação de vocês, além de tudo que já foi dito, qual é o principal ganho em fazer parte de um evento como esse?

Marcel Pinheiro: foi a segunda vez que fomos ao Festival e, neste ano, acreditamos que a nossa maneira de participar foi mais madura. Como já conhecíamos o modus operandi de Cannes, pudemos selecionar melhor as palestras e os eventos, escolhendo temáticas que fazem parte da nossa realidade. Assim, Cannes deixa de ser só luxo e glamour para se tornar verdadeiramente uma ferramenta de atualização e networking. O principal benefício, neste sentido, é a motivação que o Festival proporciona. Buscamos nos aprofundar naquilo que era tangível, nas discussões que também circundam o dia a dia da agência. E ver que é possível fazer propaganda criativa e de altíssimo nível aqui em Fortaleza é o melhor souvenir que pudemos trazer na bagagem.

E o mercado local, no caso clientes e parceiros, na avaliação de vocês, também deveria participar mais dessas grandes discussões?

Marcel Pinheiro: Com absoluta certeza. Uma mudança bastante positiva que percebemos em Cannes neste ano foi a maior participação de clientes e fornecedores. O formato mais curto e dinâmico possibilitou que mais agentes do mercado publicitário participassem dos painéis. E isso diminui a distância entre agência e cliente. Ambos entram em sintonia, passam a se situar no mesmo patamar de conhecimento, no que diz respeito a branding, linguagem e estética. O cliente assim adquire mais propriedade para julgar uma campanha e até mesmo para cobrar e extrair o melhor da agência. A agência, por sua vez, sente-se mais desafiada, mais motivada a buscar sempre a solução mais criativa. Os dois lados saem ganhando.

Apesar do Festival ter como foco a propaganda, na verdade vai muito além e compreende toda a engrenagem maior na qual a propaganda se insere.

Nesse sentido, que 'skill' vocês consideram que tenham agregado e que pode fazer toda a diferença no dia a dia?

Pádua Sampaio: O Festival, há muito, deixou de ser um evento sobre propaganda. Trata da criatividade como um todo e considera suas várias vertentes: a música, o cinema, a literatura, a tecnologia. Isso é muito importante porque a nossa atividade é totalmente multidisciplinar. E a criatividade, muitas vezes, decorre da junção de ideias que, aparentemente, são desconexas. Ou seja, quanto mais pontos diferentes você tem para interligar, maior o seu potencial criativo. O drive mais importante do Festival continua sendo que o nosso negócio é feito por pessoas e para pessoas. Apesar de vivermos a era dos dados, do Big Data, dos kpis, o sentido da mensagem foi um só, da Angela Ahrendts, VP de varejo da Apple, ao diretor de cinema, vencedor do Oscar, James Marsh: o consumidor é um ser humano cujo processo de decisão passará, certamente, por um órgão chamado coração. Precisamos conquistá-lo e fazer com que ele bata mais forte pelas marcas para as quais trabalhamos. É básico, é essencial, mas muitas vezes é esquecido e a cada Festival isso precisa ser relembrado. Não é o valor de uso que determina uma escolha, mas a percepção que se tem sobre tema, marca ou produto. E essa é uma postura que depende muito mais de vontade do que de orçamento.

E qual a conclusão principal, passado o Festival e de volta para o dia a dia da Agência e do mercado?

Pádua Sampaio: O primeiro ponto e o mais importante é não tomar tudo como verdade absoluta. Há de se absorver e adaptar o que é visto ao nosso contexto econômico e social, que são bem diferentes de muitos painéis mostrados. Enquanto a China inova em AI, a Dentsu cria um robô com feições e comportamento humanos, convivemos com uma das piores internets móveis do mundo. Não dá para, simplesmente, querer implantar a realidade desses países no Ceará. Mas dá para aplicar os fundamentos, que são até mais importantes. Além disso, é muito bom estar em uma arena em que a criatividade é tratada como necessidade e não como diferencial. Essa discussão já foi superada há muito tempo por lá. Ser relevante é condição de sobrevivência. E é consenso que propaganda criativa dá muito resultado. Essa, aliás, é uma tecla em que sempre batemos. Ser criativo é conquistar o consumidor com mais inteligência e, consequentemente, menos recursos. Logo, criatividade é uma questão, acima de tudo, de economia. Em Cannes, falamos a mesma língua.

Para finalizar, ainda com relação à ida dos três à Cannes (e outras iniciativas similares), se o negócio de uma agência é produzido por cérebros humanos para atingir cérebros humanos, nada mais natural do que aprender com outros cérebros humanos (ainda mais privilegiados...Rs.) e dessa mistura elevar a régua de todos e fortalecer o negócio. É isso?

Pádua Sampaio: É bem por aí. O nosso negócio é tutano, massa cinzenta, gerar sinapses. Investimos bastante em capital intelectual porque os clientes nos procuram justamente pela nossa capacidade de gerar soluções diferentes. Nessa hora, vale lembrar as palavras do Evan Sharp, fundador do Pinterest que esteve no Festival. Ele diz que criatividade não é questão de talento, mas de mentalidade. A gente tem muito claro isso na Delantero. Tanto que, internamente, temos montado várias iniciativas nesse sentido, de gerar e fazer circular o conhecimento. Criamos, por exemplo, a Escola de Líderes, uma espécie de universidade corporativa, que oferece módulos complementares de áreas relacionadas à gestão de empresas, montamos ciclo de debates sobre clássicos da literatura, promovemos intercâmbio entre profissionais de outras áreas com as nossas equipes e incentivamos a participação em festivais. A consistência criativa, qualidade da entrega em todos os setores e os resultados que conquistamos vêm daí, de uma equipe sedenta por conhecimento e consciente de que ideia não cai do céu. Pelo menos as boas, não.

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