Violência sexual contra crianças gera média de três denúncias por dia

Registros da Delegacia de Combate à Exploração da Criança e do Adolescente, em Fortaleza, mostram que crimes do tipo seguem sendo praticados, deixando sequelas físicas e psicológicas nas vítimas

Escrito por Thatiany Nascimento - Repórter ,

Contatos indesejados. Toques, beijos, carícias, atos sexuais... Violações que deixam sequelas físicas, emocionais e psicológicas em crianças e adolescentes que são atravessados pela perversidade de adultos. Realidade de Fortaleza, dura e conhecida. Esta semana é marcada pelo Dia Nacional de Combate à Exploração e ao Abuso Sexual desta população. No cenário local, coibir a violência sexual, ressaltam os agentes da rede de proteção, requer superar gargalos culturais e estruturais. Dados da Delegacia de Combate à Exploração da Criança (Dececa) apontam que, entre janeiro e março de 2018, foram contabilizadas 273 denúncias de crimes do tipo. Uma média de três registros a cada 24h.

No ano passado, a Dececa registrou 819 denúncias de violência sexual contra crianças e adolescentes e instaurou 351 inquéritos. Se comparado ao ano anterior, o número de denúncia feitas na Delegacia cresceu 41,6%, já que, em 2016, foram contabilizados 578 registros.

O abuso sexual inclui práticas como desnudar, tocar, acariciar as partes íntimas de crianças e adolescentes, levá-los à assistir ou fazê-los participar de atos sexuais de qualquer natureza. Nas situações de exploração sexual, a população infanto-juvenil, tratada como objeto, é envolvida em atividades sexuais em troca de dinheiro. Tais situações criminosas ocorrem de modo dissipado na Cidade que, pelo menos, desde a década de 1990 tem tentando organizar uma agenda pública de enfrentamento a essas práticas criminosas.

Histórico

Em meados de 1993, o Congresso Nacional instituiu uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para apurar casos de exploração sexual no Brasil. No mesmo ano, a Câmara Municipal de Fortaleza iniciou essa movimentação na Capital e instalou uma comissão com caráter semelhante. Em 2002, uma nova CPI foi instituída no Legislativo Municipal. Desta vez, com foco na prática de turismo sexual, incluindo os casos de exploração infanto-juvenil. Dez anos depois, novas investigações são realizadas pelos representantes do legislativo. A nova CPI sobre o assunto, identificou 74 pontos de exploração sexual contra crianças e adolescentes na Cidade.

Entre investigações e cobranças para a efetivação de políticas públicas, Fortaleza adotou algumas medidas. Dentre elas: a criação da 12ª Vara Criminal, que atua exclusivamente com crimes sexuais contra crianças e adolescentes e da Rede Aquarela - política executada pelo Município, vinculada à Fundação da Criança e da Família Cidadã (Funci)- que atende crianças e adolescentes vítimas de violência sexual e seus familiares.

Regionais

Apesar de alguns avanços, o combate à violência sexual praticada contra a população infanto-juvenil segue carecendo de vigor. As demandas aumentam e a necessidade de continuidade e melhorias nas políticas de enfrentamento e prevenção são evidenciadas a cada dia. Em 2017, conforme dados fornecidos pela Rede Aquarela, a Regional V liderou os casos de violência sexual contra crianças e adolescentes registradas na Dececa, com 220, seguida pelas regionais VI (162), III (122), II (112), IV (89) e I (88).

Os conselhos tutelares de Fortaleza - uma das portas de entradas para denúncias -, em 2016, registraram 467 relatos de abuso sexual e 111 de exploração. Em 2017, esse números foram respectivamente 254 e 181.

No campo dos atendimentos às vítimas e familiares, a Rede Aquarela que existe há mais de 10 anos, realiza acompanhamentos, tanto nas instituições de polícia e justiça, como desenvolve ações continuadas com as crianças e os adolescentes. Na Dececa e na 12ª Vara, informa a coordenadora, Kelly Menezes, a Rede atua com psicólogo e assistente social. Já nos atendimentos sistemáticos, além das duas categorias profissionais, o trabalho conta, ainda, com advogados e educadores sociais.

Acompanhamento

A ação da Rede é iniciada no registro das denúncias e segue com o atendimento psicológico e social às vítimas e famílias que queiram o apoio. O atendimento, explica Kelly, começa no registro do Boletim de Ocorrência na Delegacia, pois "não esperamos o julgamento para fazer o acompanhamento, porque, se for esperar, demora, em média, 6 meses, e a criança pode ter a situação de violência agravada", diz. Caso seja constatado que a denúncia não procede, o atendimento é encerrado. Porém, ela destaca que é inexpressivo o número de casos em que a situação denunciada não se comprova.

"Não somos investigativos. Trabalhamos em cima dos sintomas que as crianças apresentam. A assistente social acompanha a família e muitas vezes o agressor é um membro da família. O agressor é o provedor da casa. O acompanhamento jurídico também é por conta desse cenário. Precisa acionar os mecanismos legais para o pagamento de pensão", esclarece a coordenadora.

No combate a essas violações, segundo Kelly, uma das dificuldades, sobretudo, nos casos de exploração sexual, é as vítimas se perceberem nessa condição. "As denúncias muitas vezes são feitas por um terceiro que percebe a situação. A vítima, às vezes, não confirma porque envolve relações afetivas. Há uma série de fatores que a levaram aquilo, mas elas não percebem que estão sendo exploradas", explica.

Gargalos

O cenário é cruel e, apesar da necessidade, a Rede Aquarela atende somente ocorrências de três Regionais (III, IV e V). As demais, ficam a cargo do Centro de Referência Especializado de Assistência Social do Município. A proposta de ampliação desse trabalho já é uma demanda conhecida. A expectativa, conforme Kelly, é de que a Rede irá contemplar a Capital inteira até o fim deste ano.

Se essa situações de violência são conhecidas e a demanda, crescente, a Assessoria Jurídica do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente (Cedeca), Dillyane Ribeiro, ressalta que a rede de atendimentos passa por processos de desestruturação. Ela enfatiza o trabalho realizado pela Rede Aquarela e aponta a necessidade histórica de ampliação da mesma. "É um atendimento especializado e esse acompanhamento já é mensal para cada criança. Entendemos que, diante de um trauma dessa natureza, um único atendimento é muito pouco", argumenta.

Dillyane aponta que a natureza dos atendimentos realizados pela Rede Aquarela e pelo Creas é distinta. Sendo o da Rede Aquarela mais adequado para esta demanda específica. Esta violência, classifica ela, é uma expressão de relação de poder, um ato de domínio de adultos sobre as crianças. Além disso, destaca, é uma violência marcada pelo recorte de gênero e as mulheres são as principais vítimas.

Outro ponto enfatizado pela representante do Cedeca, é a interferência dos discursos conservadores nas atividades de prevenção, já que as discussões preventivas, realizadas com crianças e adolescentes em escolas "acabam sendo distorcidas". "É fundamental trabalharmos com as famílias para que elas possam encarar o problema. Defendemos o desenvolvimento de crianças em ambientes saudáveis e isso inclui o desenvolvimento sexual saudável", ressalta.

Fique por dentro

Lei da "Escuta Protegida" já está em vigor

Desde o dia 4 de abril deste ano, a Lei Federal Nº 13.431/17, que estabelece a proteção aos depoimentos de crianças e adolescentes vítimas e testemunhas de violência, está em vigor. A norma determina que esses depoimentos devem contar com o apoio de uma equipe técnica capacitada, evitando-se ao máximo o contato das vítimas com o agressor. Conforme a legislação, todos os órgãos de saúde, assistência social, educação, segurança pública e justiça deverão garantir a escuta protegida.

Em Fortaleza, onde tramitam hoje 1.255 processos envolvendo abuso e/ou exploração sexual de crianças e adolescentes, na 12ª Vara Criminal - especializada nesse tipo de crime -, o Fórum Clóvis Beviláqua, conta com sala de depoimento especial. O local é fruto de um convênio firmado entre o Tribunal de Justiça do Ceará (TJCE) e a Prefeitura de Fortaleza.

Com este espaço, a oitiva das crianças tem que ser feita por assistente social ou psicólogo, em uma sala reservada, equipada com recursos de transmissão para as audiências. Segundo o TJCE, ano passado, foram julgados 254 processos envolvendo estes tipos de crimes e, em 2018, já foram apreciadas 87 ações.

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