Tradição e novidade compõem identidade do Carnaval de Fortaleza

O brincar de antes era nas ruas do Centro da cidade e deixa saudades até hoje em quem viveu o "apogeu" da festa momina na Capital - hoje ocupada por ritmos e estilos tão variados quanto modernos

Escrito por Theyse Viana ,

As marchinhas ainda ecoam, em alto e bom som - batem nas paredes da memória e as fazem tremer, assim como as estruturas das casas do Centro de Fortaleza, nos anos 1940 até 1970, naqueles domingos. São as notas musicais que fazem o passado reverberar no futuro, e é das antigas letras e percursos que o eterno folião José Augusto Lopes, de "7 e reticências" anos, lembra ao falar do "apogeu" da festa momina na Capital - cujas raízes misturam-se às novidades e mantêm firme o espírito de celebração em fevereiro-março.

Os percursos mais tradicionais percorriam as avenidas Duque de Caxias, Dom Manuel, e ainda as ruas Senador Pompeu e São Paulo, cenários vivos na memória de quem, mesmo após sete décadas de vida, os armazena como embrulhos de afeto - "mas sem saudosismo". "Naquele tempo, moça só podia sair com o namorado se levasse um primo ou irmão. E eu ia nessa! Brinquei o Carnaval desde os sete anos, com as minhas primas. E, depois de grande, nos clubes suburbanos", relembra o jornalista aposentado.

A cidade, tão desigual e dividida socialmente quanto hoje, só se unia mesmo na energia da festa: os espaços continuavam restritos, alguns só acessados por quem tinha mais recursos. "Havia os chamados clubes elegantes, como Náutico, Diário e Regatas, que promoviam festas estrondosas. Lá, a gente não podia nem dar um beijo na boca", gargalha José Augusto. "Já nos clubes suburbanos, que ficavam nos bairros - como Parque Araxá, Parangaba, Pirambu -, era onde a gente se soltava, toda a população ia".

Ruas

As ruas, porém, eram de todos: a diversão de muitos ficava por conta dos "Blocos de Sujos", composto por foliões que saíam atrás dos grandes grupos, aproveitando de graça os decibéis que sobravam da música. Em resumo, o que se costuma chamar hoje de "pipoca". Era o Centro o dono do Carnaval, "onde automóveis e caminhões desfilavam fantasiados, com o povo em cima dos capôs", comemorando e, ao mesmo tempo, reivindicando.

"As marchinhas ainda são muito contagiantes. E os sambas tinham muito conteúdo, romântico ou político, de crítica social. O Carnaval era a voz popular", conclui, intercalando as lembranças com as letras famosas de "Nós, nós os carecas / Com as mulheres somos maiorais / Pois, na hora do aperto, / É dos carecas que elas gostam mais!", "Se você fosse sincera / Ô, ô, ô, Aurora! / Veja só, que bom que era?". E de marchinhas sobre escassez de água, os salários baixos da época e a falta de moradia, temas que também se esgueiravam entre sorrisos e cores como pedidos de socorro popular.

Se o ponto de virada em que muitas tradições esmorecem não é muito claro, o início da transformação do Carnaval de Fortaleza é pontuado com veemência pelo ex-folião. "O que acabou com o nosso Carnaval de Rua foi mudarem do Centro pra Aguanambi, só pra mostrar a avenida, coisa política, em 1970. Nem todo mundo se dispunha a se deslocar pra lá ver os blocos, porque aquela avenida não era pra isso. A tradição começou a se perder", lamenta.

Resgate

Apesar disso, para José Augusto, "o espírito folião do fortalezense" tem sido resgatado pelas festas do Pré-Carnaval atuais, sobretudo as gratuitas ofertadas em espaços públicos como Praia de Iracema, Mercado dos Pinhões, Rua dos Tabajaras e Praças da Gentilândia e dos Leões - eleitos pelo folião Zé Filho, 27, como principais para a identidade atual da festa na Capital.

"Nunca passei um Carnaval fora de Fortaleza. Não que isso seja um objetivo, mas eu vejo que as pessoas estão querendo muito ficar. É um Carnaval crescente, e eu gosto muito do estilo. Não fica impossível de caminhar, a cidade fica superfrequentado e com os espaços ocupados", descreve o empresário e organizador de um dos blocos mais recentes da cidade, o Glitter.

Brincante assíduo dos "prés" e do período momino na cidade, Zé já conheceu o Carnaval em moldes diferentes dos antigos, quando a liberdade já era o principal símbolo e a maior potência da festa. "Desde criança, eu tenho esse evento como revolucionário, um momento em que eu poderia ser quem eu quisesse: um pássaro, uma árvore, o que fosse. Por essas limitações que a sociedade sempre colocou, era o único momento em que eu estava aberto para usar qualquer tipo de roupa. Foi uma quebra que a festa representou pra mim", conta.

Periferia

Entre a participação em Maracatus, quando pequeno, e a organização do Glitter, fundado em 2017; Zé Filho destaca que as fantasias, antigamente usadas como caricaturas, são hoje como as marchinhas cantadas por Zé Augusto Lopes, nos anos 1950: poderosos símbolos de protesto. "A roupa pode comunicar sem precisar abrir a boca, falar sobre temas atuais. As pessoas batem o olho e sabem o que você pensou em propor - têm uma potência muito grande".

Essa força, aliás, como o folião ressalta, "não pode ficar apenas nas regiões centrais, mas precisa adentrar as periferias" - como os Cucas, por exemplo, que devem emergir como novos polos possíveis para o Carnaval fortalezense. Sem perder a tradição - nem a ternura - jamais.

"A ideia dessa nova geração é juntar as músicas que a galera sempre escuta com as do Carnaval antigo. Não é só propor algo novo, mas valorizar o que já aconteceu e colocar a novidade. Não é apagar a história do que o Carnaval de Fortaleza foi, mas reinventá-lo, é também ressignificá-lo", aposta o brincante.

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