Trabalho infantil nega saúde, educação e formação a crianças

Abusos físicos, psicológicos e até sexuais podam futuro de mais de 73 mil crianças no Ceará

Escrito por Theyse Viana - Repórter ,
Legenda: Crianças nos semáforos de Fortaleza vendendo produtos para a Copa
Foto: FOTO: FERNANDA SIEBRA

O sorriso é fácil, de empreendedor inconsciente. "Um é dois, três é cinco, tia! Vai levar?" Nos solavancos do ônibus lotado, o corpo pequeno, puxado para baixo pela enorme sacola, encontra freio nos adultos - já que os braços, ainda curtos e franzinos, sequer alcançam a barra de apoio superior. Botão laranja, bipe agudo, "valeu, seu motorista" e desce em busca de subir no próximo coletivo, com alguns pacotes de sequilhos a menos na bagagem, poucos trocados a mais no bolso, e muito, muito tempo de infância perdido.

Como L.H., aos 12 e já trabalhando como vendedor ambulante "pra ajudar a mãe em casa", pelo menos outros 73.895 crianças e adolescentes de 5 a 17 anos eram submetidos ao trabalho infantil no Ceará, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) 2015, mais recente levantamento sobre o cenário estadual. Do total, 48.282 atuavam em zonas não agrícolas, em atividades como serviços domésticos, construção civil e comércio informal - este bem conhecido por C.E. E J.M., cujos 13 e 12 anos de idade, respectivamente, carregam responsabilidade de adulto, esgueirando-se entre os carros sob o sol escaldante de Fortaleza.

"Nós estuda, sim, mas hoje a escola tá parada, não teve aula. Tô aqui desde 6h30, mas fui em casa almoçar, viu? Dá pra ganhar um trocado e ajudar em casa", relata C.E., vestindo-se inteiro com justificativas e com uma das bandeiras do Brasil que vende no sinal. Miniatura de adulto que é, o menino que faz judô, mas sonha mesmo é em ser jogador de futebol, defende que a mãe "não gosta muito" dessa história de criança exposta aos perigos da rua - mas a ajuda, afinal, é bem-vinda.

O colega de "trabalho" J.M., por outro lado, encontra concordância no pai para vender muambas no semáforo. "Ele é ambulante no sinal também, quer que eu trabalhe com ele, e minha mãe não quer. Mas mesmo assim eu vim com o C.E. E outro amigo da nossa idade", diz o garoto, lembrando com naturalidade do dia das mães, quando esteve no mesmo local vendendo rosas vermelhas - cuja colheita possivelmente foi ajudada por um dos 25.613 pares de mãos infantis que trabalham na agricultura ou em outras atividades campestres no Ceará.

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Denúncias

Um dos agravantes para o fortalecimento do trabalho infantil no Estado, aponta o procurador do Ministério Público do Trabalho do Ceará (MPT-CE), Antonio de Oliveira Lima, é a naturalização da atividade ilegal. "Uma parte da sociedade não vê como um problema, outra considera de pequena relevância ou potencial ofensivo, alguns veem como solução para os pobres ou para a violência, e tem ainda os indiferentes, que não conseguem perceber que a situação existe", lamenta Lima.

O comportamento, então, leva ao que ele considera um dos principais entraves no combate: a falta de denúncias. "Atuamos mais proativamente, porque as pessoas acham que é normal. Mas, quando chegamos aos casos, nossa dificuldade mesmo são as múltiplas vulnerabilidades das crianças e das famílias. A sociedade e o Poder Público precisam dar respostas quando a família não consegue. É necessário melhorar as políticas públicas de educação, proteção social e de profissionalização", alerta o procurador do Trabalho, ampliando a responsabilidade sobre a prática ilegal.

Atualmente, o MPT, por meio da Rede Peteca, atua no enfrentamento ao trabalho infantil em 130 municípios cearenses, "para prevenir, articular e capacitar a rede de proteção, principalmente na educação". Durante esta semana, em alusão do Dia Mundial e Nacional de Combate ao Trabalho Infantil, 12 de junho, a rede investirá no empoderamento das próprias crianças e adolescentes, por meio de encontros, debates e comitês sobre o tema, para que atuem como fiscais e educadores nas escolas e em seus meios sociais. Até o fim de 2019, o projeto cearense deverá se expandir para todos os estados do País.

As campanhas de conscientização da sociedade também são defendidas pela juíza do Tribunal Regional do Trabalho (TRT-CE) e coordenadora regional do Programa de Combate ao Trabalho Infantil no Estado, Karla Yacy, como braços fundamentais do enfrentamento. "A fiscalização é difícil, e o cidadão não percebe que ter uma criança no sinal, fazendo trabalho artístico ou pedindo esmola, é trabalho infantil. Dar esmola é contribuir para fortalecer, mais atrapalha do que ajuda", salienta Yacy.

A juíza chama atenção ainda para as principais sequelas às vítimas. "O trabalho infantil geralmente está associado a cárcere privado, abusos físicos e até violações sexuais. No caso do doméstico, pode causar muitos danos ao desenvolvimento, como doenças na coluna e isolamento social da criança", enumera, ao que o procurador do MPT complementa: "a evasão escolar é três vezes maior entre os que trabalham. Há prejuízos no presente, porque a criança deixa de viver a infância, e no futuro, já que negligenciando os estudos não terá oportunidades de trabalho", informação que justifica um dado alarmante.

"Mais de 90% dos resgatados em trabalho escravo ou dos adolescentes no Sistema Socioeducativo têm histórico de trabalho infantil. A noção de que 'criança que trabalha não se envolve com o crime' é mito", esclarece o procurador Antonio Oliveira Lima.

Punição

De acordo com o procurador, a empresa, ainda que familiar, que for flagrada impondo crianças ou adolescentes ao trabalho estão sujeitas a multa de até R$ 3 mil, imputada pelo Ministério do Trabalho. "Existe também a possibilidade de condenação por dano moral coletivo, ato de infração por contratação ilegal e obrigação de pagar verbas rescisórias pelo tempo de serviço", explica.

Em Fortaleza, a Lei Municipal nº 10.661 determina que a prática de exploração do trabalho infantil gera penalidade de R$ 500 a R$ 5 mil aos estabelecimentos. Em caso de reincidência, a punição é dobrada e as atividades do local são suspensas por 30 dias.

Pela lei, as empresas também devem colocar em local visível uma placa com informações sobre os danos causados pelo trabalho infantil, seguida de informações do Disque 100. Os valores das multas, diz a Prefeitura, são destinados ao Fundo Municipal da Criança e do Adolescente.

Conforme o secretário de Direitos Humanos e Desenvolvimento Social de Fortaleza, Elpídio Nogueira, "equipes da Pasta, junto à Fundação da Criança e da Família Cidadã (Funci) e ao Conselho Tutelar, recebem denúncias e fiscalizam semanalmente as feiras livres, a Avenida Beira-Mar e os semáforos" da cidade - locais onde, segundo ele, o problema de trabalho infantil é mais recorrente.

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