Projetos sociais resistem à falta de estrutura e ao aumento da violência

Apesar da carência de verbas, de estrutura e, atualmente, da "guerra entre facções", boas ações seguem sendo realizadas e mudam vidas na periferia

Escrito por Thatiany Nascimento - Repórter ,

Se o acesso à cultura e à formação fosse mais igualitário. Se a violência não batesse na porta, antes mesmo de muitas crianças chegarem aos 10 anos. Se as drogas não atravessassem precocemente tantas trajetórias... As condições de vida seriam outras nas periferias de Fortaleza. Mas, se a condições demonstram que, muitas vezes, o Estado falha, as famílias acumulam conflitos e os espaços institucionais, já não dão conta de amenizar a complexa realidade, os projetos sociais surgem como oxigênio na vida de crianças e adolescentes. A resistência histórica dessas ações, fixa a certeza: os jovens "escapam" porque, pelo menos, esses projetos existem. Apesar da falta de verba, de estrutura e, mais recentemente, da "guerra entre as facções", as ações seguem e são chances concretas de transformação em bairros pobres.

Leia mais:

> Entrevista: ações precisam de apoio para ganhar em escala

Ter um irmão assassinado pelo tráfico. Ver o pai ser lesionado a bala. Não ter dinheiro para, aos 15 anos, ir ao cinema, ao museu ou algum outro lazer. Não saber ao certo quando chegará uma "oportunidade". De certeza, apenas a existência de um projeto que o faz "se sentir bem e aprender coisas". Surfar e aprimorar o futebol, são feitos lembrados por Miguel (nome fictício), quando questionado sobre os benefícios de um projeto social.

No Pirambu, bairro onde nasceu e se criou, Miguel relata que sua família "era meio bagunçada". Mas, de uns tempos para cá, tem melhorado. Há oito anos, ele entrou no projeto "Resgatando Vidas", idealizado por Evandro Rocha, egresso do sistema prisional. Na iniciativa, que, há três anos, já teve bastante força, e hoje carece de verbas e incentivos, outros 39 meninos encontram espaço para vivenciarem experiências que antes eram pouco acessíveis.

Aulas de surfe, de futebol e Educação Ambiental, além de visitas a centro culturais são alguns atrativos. Nascido e criado no Pirambu, Evandro sabe que a realidade "nunca foi fácil". Após 16 anos no presídio, optou por tentar mudar a vida de outros jovens. Junto a três amigos, criou, em 2010, o projeto, que sobrevive de doações e ações voluntárias. A comunidade, conta ele, "é que ajuda a patrocinar".

A violência, referência recorrente nas narrativas da periferia, alerta moradores e voluntários, mas não os abate. Evandro relata o recrudescimento das facções como fator que afeta a rotina dos projetos. Não poder participar de campeonatos em outras comunidades é um dos obstáculos. "Alguns jovens entendem que esses do projeto fazem parte de alguma coisa e fica aquele clima ruim", relata.

Territórios

A situação parece se transportar de um bairro a outro, e, no Ancuri, o projeto "Futebol Nova Geração" sofre problemas semelhantes. Falta verba, estrutura e a "guerra entre grupos criminosos" reduz as atividades. O trabalhador autônomo, idealizador do projeto, Jorge Luiz Vieira, diz que a ação, quando iniciada, em 2013, tinha 20 crianças e adolescentes. Dois anos depois, somava 60. Hoje, são apenas 35.

"O nosso projeto acontece em uma área bem disputada entre duas facções. Tem dias que são tranquilos, mas, quando a semana está 'inflamada' a gente sabe que menos meninos vão comparecer. Sabemos que as facções 'nos deixam fazer o trabalho' porque não ameaçamos de forma direta o que eles fazem, mas, ainda assim, o medo faz o público deixar de ir", conta Jorge. No projeto, os integrantes, que têm entre 6 e 19 anos, praticam atividades esportivas e participam de rodas de conversa.

No Jangurussu, os dilemas e os êxitos são semelhantes. Na comunidade Santa Filomena, o ex-jogador Paulo Uchôa, há pouco mais de 10 anos idealizou um projeto social que ainda reverbera. Oficializada em 2008, a ação hoje é financiada pela ONG Visão Mundial - instituição humanitária presente em diversos países. Ao todo, 200 crianças e adolescentes são atendidos em atividades esportivas e educativas.

O "novo desafio" é transpor os limites gerados pela "guerra entre as facções". Porém, segundo Paulo, o projeto acaba sendo um território neutro, respeitado. "Há esses conflito entre eles. Mas não nos interessa. Não são somente as facções o nosso problema. O que queremos é não deixar essas crianças irem para o caminho errado. Digo que aqui temos quatro tipos de Uber. O de pé, de bicicleta, de moto e de carro. Quando o conflitos afetam o projeto, os Meninos de Deus vão pegar os outros em casa", reforça.

Na Granja Portugal, o projeto Geração Cidadã, resiste há mais de 15 anos. A iniciativa que, no atual período, também recebe incentivos, dentre outros, da ONG Visão Mundial e do Serviço Social do Comércio (Sesc), é polo de aprendizado de música, natação, balé e leitura. Ao todo, 2.500 crianças, entre 6 meses e 10 anos, moradoras de duas comunidades do bairro, são beneficiadas pela ação.

Para a coordenadora do Geração Cidadã, Joyce Luz, historicamente são muitos os gargalos para continuar atuando, mas a resistência mantém o projeto vivo. Hoje, se a intensificação da violência provoca a paralisação momentânea das visitas domiciliares ou afeta o comparecimento do público atendido, os voluntários insistem. Os obstáculos não são poucos, sabe ela, mas podem ser superados.

Devido às menções diretas ao impacto do aumento da insegurança na realização dos projetos, o Diário do Nordeste contactou a Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social do Ceará (SSPDS) para tratar do assunto. Mas, até o fechamento desta edição, não obteve resposta.

Os destaques das últimas 24h resumidos em até 8 minutos de leitura.