Prisão domiciliar: falta de acesso a direito prejudica mães e filhos

Habeas Corpus coletivo para grávidas, lactantes e mães de menores de 12 anos, determinado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em fevereiro, continua pendente para centenas delas, recolhidas em presídios cearenses

Escrito por Theyse Viana , theyse.viana@diariodonordeste.com.br

Era 1871 quando a Lei do Ventre Livre foi promulgada no Brasil, determinando a liberdade de crianças nascidas de úteros escravos. Passados 147 anos, uma analogia se impõe, respeitados os contextos históricos: em fevereiro de 2018, o Supremo Tribunal Federal (STF) determinou Habeas Corpus (HC) coletivo para substituição de prisão preventiva ou provisória por domiciliar para mães presas, visando impedir a permanência de bebês no cárcere e a ausência maternal na rotina de menores de 12 anos. O direito, porém, esbarra na falta de celeridade da Justiça.

No Ceará, 1.010 mulheres estão privadas de liberdade no Instituto Penal Feminino (IPF) Desembargadora Auri Moura Costa, 24 delas grávidas e outras nove acompanhadas pelos filhos na creche Irmã Marta, anexa ao presídio. No total, de acordo com a Secretaria da Justiça e Cidadania do Estado (Sejus), 303 presas atendem aos requisitos previstos no HC coletivo, mas permanecem na unidade prisional.

"Não existe prazo para concessão, porque é como um processo penal, passa pelo Ministério Público e pelo juízo. Alguns juízes dão a resposta, favorável ou não, em mais ou menos um mês, que é um prazo até razoável. Já outros passam de três a quatro meses, e a mulher continua esperando", critica a defensora do Núcleo de Assistência ao Preso Provisório e às Vítimas de Violência (Nuapp) da Defensoria Pública Geral do Estado, Noemia Landim.

A prisão domiciliar, explica, pode ser concedida "pelos próprios juízes, sem requerimento, ou solicitada pelo advogado ou por defensor público", uma vez comprovada a maternidade. Entre fevereiro, quando o HC coletivo foi determinado pelo STF, e novembro, 179 mulheres foram "soltas" beneficiadas pela liminar, conforme a Sejus. "A soltura, entretanto, é uma competência do Poder Judiciário", reforça a Pasta.

A defensora do Nuapp garante que "o número deve aumentar, porque a procura de meios para conseguir a documentação necessária tem sido intensificada". Por meio de nota, o Tribunal de Justiça do Ceará (TJCE) afirmou apenas que "o tempo de julgamento dos pedidos é variável, a depender da complexidade de cada caso".

Lágrimas

A máxima de que o tempo é relativo nunca fez tanto sentido para Antônia como agora. Foram só 18 dias, os mais longos que já viveu. Acordar longe do filho João, 5, ardia na mente e no corpo. As lágrimas escapam até hoje, junto com a lembrança. Somando o período na delegacia às duas semanas reclusa no IPF Auri Moura Costa, foram 18 dias em regime fechado, mesmo sem sentença. Hoje, Antônia, cujo nome verdadeiro se esconde no medo de facções criminosas, cumpre prisão domiciliar, beneficiada pelo HC coletivo.

"Todo dia meu filho perguntava: 'vovó, cadê minha mãe?' 'Tá trabalhando, mas tá pra chegar', ela dizia. Foi muito doloroso", relembra, restrita às quatro paredes da casa da mãe, de onde não pode sair. "Tô em casa com o meu filho, mas não posso ir deixar no colégio, buscar, ir ao médico. Se eu estiver doente, tenho que ir nas últimas, e falar antes com a Sejus pra ser liberada, senão corro risco de ser presa de novo".

A rotina, então, se desenha entre os cômodos da casa e os cuidados com o pequeno, monotonia entrecortada por uma espera cega: a da Justiça. "Tá com 8 meses que eu estou presa em casa, não fui julgada, não sei de nada, não tenho mais advogada nem defensor público. O que eu mais desejo é que o juiz decida logo, porque sei que hoje em dia já é difícil arrumar emprego, e com nome sujo ainda mais. Mas quero uma oportunidade, uma vida nova", assume, em tom de arrependimento pela contravenção que a derrubou: o tráfico de drogas.

Deficiência

Enquanto o direito das mulheres no cárcere não é posto em prática, 682 crianças de até 12 anos de idade seguem aguardando o retorno à casa das 448 mães presas sem sentença condenatória no Ceará. Dentre as centenas de pequenos, como contabiliza a Defensoria Pública a partir de dados da Sejus, 25 foram identificados com alguma deficiência.

"Uma mulher que poderia estar com os filhos ou uma grávida fazendo o pré-natal com liberdade está presa. Sem contato com filho e família. No Auri, temos crianças de até um ano de idade, que ficam com as mães lá. O prejuízo é muito grande, porque elas não têm convivência familiar. O mundo delas é restrito. Dois, três, quatro meses a mais prejudicam o crescimento e, muitas vezes, até questões de saúde", alerta Noemia, ressaltando, porém, que a assistência médica na unidade prisional feminina é atuante, apesar de sobrecarregada.

Conforme a Sejus, o IPF "conta com uma creche para que mães e bebês fiquem juntos, fora de celas, no período de amamentação; acolhendo também as mulheres com mais de sete meses de gravidez". O pré-natal é feito na unidade, já o parto, na rede pública. Os bebês podem permanecer cercados pelas mesmas grades que as genitoras por até um ano, recebendo acompanhamento de "médico clínico, obstetra, pediatra, enfermeiras, nutricionistas, psicólogos, terapeutas e assistentes sociais", assegura a Sejus.

A defensora relata que "há dois médicos no IPF, ginecologista e clínico geral, mas existe uma demanda muito grande". Para ela, "isso seria evitado com a prisão domiciliar, porque as mulheres ficam monitoradas, mas podem fazer pré-natal, levar o filho ao médico". Ainda sobre a estrutura, Noemia aponta que "tem professoras e escolinha, mas não abarca todas as famílias".

 

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