Decisão facilita mudança de nome e gênero no Registro Civil no Ceará

Publicação no Diário da Justiça do dia 7 de maio autoriza mudança de prenome e gênero, sem a necessidade de autorização judicial e cirurgia de redesignação sexual

Escrito por Márcio Dornelles ,

Rafaela carregava uma pasta repleta de documentos e um sorriso cheio de sonhos. No balcão de um cartório no Centro de Fortaleza, tornava-se oficialmente o que sempre quis ser: ela mesma. A papelada era conferida com carinho, o mesmo usado para assinar a ficha com a retificação de nome e gênero. Transexual, há cinco anos buscava alterações no Registro Civil via Justiça, mas esbarrava na burocracia. 

Apesar de restarem 14 documentos, o procedimento foi facilitado com a publicação, no Diário da Justiça do dia 7 de maio, do provimento número 9/2018 da Corregedoria-Geral da Justiça do Ceará, que autorizou mudança de prenome e gênero, sem a necessidade de autorização judicial e cirurgia de redesignação sexual, a mudança de sexo. Também foi ignorado laudo médico ou psicológico. A decisão é tida como pioneira no Nordeste e uma das primeiras no Brasil.

Além de vanguardista, é uma correção histórica, na opinião do corregedor-geral Francisco Darival Beserra Primo, quando da divulgação da medida. Segundo ele, o objetivo é “regulamentar a situação daqueles que já foram e ainda são preteridos historicamente, vítimas de violência física ou moral ou até sujeitos à imposição da invisibilidade ou indiferença”. O órgão tomou como ponto de partida decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal (STF), no mês de março, que reconheceu o direito à substituição de nome e gênero diretamente no ofício de Registro Civil, independente de cirurgia, tratamentos hormonais ou patologizantes.

Uma das dúvidas geradas versa sobre um possível impedimento para as alterações diante de restrições financeiras, por exemplo. A presidente da Comissão de Diversidade Sexual da OAB-CE, advogada Vanessa Venância, explica que as pendências não serão um empecilho, mas uma herança. “Vão ser transferidos bens e propriedades, assim como dividas e débitos trabalhistas. Se tiver um processo, vai ser transferido, até para evitar qualquer tipo de fraude, falsidade ideológica e manipulação equivocada desse direito”, esclarece.

Muda a vida

“Muda a vida inteira. É fantástico. Você não sabe o constrangimento que é estar no hospital e chamarem o seu nome masculino, ou de férias no hotel com o namorado e ter que dar o documento. Você se constrange e ele também”, comenta a estilista Rafaela, 31, enquanto aguarda a tabeliã Salete Jereissati conferir a data de nascimento nos registros do cartório. Por uma questão pessoal, preferiu omitir o sobrenome à reportagem. Ela cita que já passou por muitas situações delicadas, a exemplo de uma recente viagem de avião. Já sentada, uma aeromoça afirmou que Rafaela estava na poltrona errada. “Ela disse que o lugar era do fulano. Eu disse: 'oi'. Um silêncio total de todo mundo dentro do avião”, lembra, com o sorriso leve de quem estava se livrando deste tipo de impasse.

A queda dessas barreiras faz parte do trabalho desenvolvido pela titular executiva da Coordenadoria Especial da Diversidade Sexual de Fortaleza, Dediane Souza. Ela se autoafirma travesti e ativista e vibra com mais uma conquista, apesar de reconhecer que ainda há muito a ser feito. “A gente precisa, no campo da política pública, de três eixos centrais: reconhecer, promover e garantir. A gente reconheceu, agora o trabalho de todos é promover, para, de verdade, garantir”, diz. A mudança nos documentos dela será feita ainda em maio. Na mesa ao lado, ouvia a conversa Thina Rodrigues, 56, que chegou a desistir do processo judicial tradicional. Agora, também pretende aproveitar a redução de documentos para “existir”. “Nos lugares, precisava de três testemunhas para provar que eu era a Thina. Eu não preciso provar o que sou. Eu sou.”

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