Mulheres fazem do lixo meio de sustento em Fortaleza

O trabalho árduo de catar lixo se perpetuou em diversos lixões de Fortaleza como forma de sobrevivência. No Jangurussu, segue na Associação de Catadores, com presença numerosa de mulheres. O cenário é diferente do passado, mas o trabalho ainda é desvalorizado

Escrito por Thatiany Nascimento , thatiany.nascimento@diariodonordeste.com.br

Francisca Fernandes Souza encosta o nariz em um vidro de perfume misturado a outras garrafas no galpão de reciclagem da Associação dos Catadores do Jangurussu (Ascajan). “Cheiro de coisa boa”, constata.

É um dia comum e, aos 74 anos, ela segue no meio do expediente tentando cumprir as 7 horas diárias. Envolta da quentura do amontoado de lixo reciclável, executa a tarefa quase automática. Separa resíduos oriundos de vários bairros de Fortaleza. Daquilo que é descartado, dona Chica tira o sustento. Sempre foi assim. Segue sendo. Trabalho árduo perpetuado historicamente nos lixões da Capital. Continua no Jangurussu. Pela necessidade de sobreviver.

Os rastros do lixo como fonte de recursos ainda que míseros, são seguidos por inúmeras mulheres para manterem-se vivas. No galpão da Ascajan, as histórias assemelham-se. Catadoras. Pobres. Mães. Universos aproximados pelas similaridades das demandas financeiras e sociais. Marcas da urgência de ter sustento. Das mães e das crias. 

As contas não mensuram objetivamente quantas vidas são sustentadas pelas “sobras alheiras”. Mas o que o cotidiano em Fortaleza comprova é que sem dúvidas foram e continuam sendo centenas. Na Ascajan, pelo menos, 57 famílias dependem da reciclagem. 

Legado dos lixões urbanos. Sendo o maior e mais duradouro deles o Jangurussu. No percurso de dona Chica, que chegou em Fortaleza aos 20 anos, vinda de Paracuru, há passagem por, pelo menos, três lixões. “Casquerou” lixo na Barra do Ceará, Henrique Jorge e Jangurussu. De onde não mais saiu. Catou lixo na rampa. Grávida, carregou tambor nas costas. Sem proteção alguma.

Era no inverno e no verão. A gente não parava nunca”, conta. Criou seis filhos. Nenhum deles, relata ela, “quis o mesmo destino”. “Quando eram pequenos eu até trazia, mas depois eles foram fazer outras coisas.

Histórias compartilhadas no galpão
 

O galpão é dividido com Maria Laucimar Silva e os obstáculos da trajetória também. Recicladora de 50 anos, sendo quase 30 deles atrelados a atividades no lixo, Laucimar também tem no histórico três lixões inativos. Barra do Ceará, Antônio Bezerra e Jangurussu. Quando começou a coletar lixo sequer tinha atingido os 15 anos. Em sua família, ser catadora era “profissão” antiga. Pai e mãe assim atuaram e o trabalho foi passado a outras gerações.

Tal qual a colega de galpão – dona Chica – Laucimar passou a vida deslocando-se. Escolhas alheias às suas, mas vistas como oportunidades. No Jangurussu disputava com outras centenas de trabalhadores.

Legenda: Maria Laucimar Silva, 50 anos, tem quase 30 deles atrelados a atividades no lixo. No seu histórico de trabalho há três lixões inativos: Barra do Ceará, Antônio Bezerra e Jangurussu.
Foto: Foto: Fabiane de Paula

No galpão, com a perna direita afetada por uma paralisia, Laucimar atua de segunda a sexta. Se chegará aos 60 ou 70 anos ainda catando lixo? Não sabe. O que garante é que “não há mal em ser catadora”. “Mantida a dignidade”, reforça, “todo trabalho vale”. 

Lembro que de vez em quando tinha coisa boa. Tinha pulseira cara, alumínio grosso, tinha carne gelada que a gente pegava e comia. A gente trabalhava do jeito que dava certo e pegava as coisas e vendia pra os atravessadores.

Se Chica e Laucimar já percorreram Fortaleza, Nirvanda Pereira, 49 anos, tornou-se catadora quando o Jangurussu já estava inativo. Agregou-se aos demais trabalhadores da reciclagem na época em que o despejo de lixo na rampa foi encerrado oficialmente em 1998.

Dos gás ao aluguel, da comida à roupa. Recursos garantidos pela força de trabalho de quem aprendeu a casquerar nas seis esteiras (que já não funcionam mais), dividindo o espaço com até 400 pessoas.

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Na sede da Ascajan, Nirvanda é uma das únicas catadoras que trabalha com luvas. Relata ter adquirido uma alergia nas mãos e diz não gostar das botas de proteção.

Nessa atividade, boa parte dos trabalhadores não sabe ler, nem escrever. Também não há férias. Nem 13º salário. A renda varia conforme a produção coletiva. Em geral vai de 120,00 à no máximo R$ 400,00 por quinzena. E, embora todos esses direitos façam falta, o serviço não para.

No bairro atravessado pela reciclagem, montanhas de lixo seguem passando pelas mãos dessas mulheres. Ainda que sem o devido reconhecimento, elas ressignificam, no cotidiano, o valor do lixo e das histórias que provêm dele.

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