Moradores "privatizam" vias públicas em nome da segurança

Instalar portões, cancelas ou outros impedimentos para acesso de veículos ou pedestres é prática proibida pelo Código de Obras e Posturas do Município, porém cada vez mais adotada em Fortaleza

Escrito por Theyse Viana , theyse.viana@diariodonordeste.com.br
Legenda: Por trás das grades, rua na Cidade dos Funcionários tem acesso restrito a moradores
Foto: FOTO: JOSE LEOMAR

O portão automático fecha o muro erguido na entrada, protegido em toda a extensão por cercas elétricas em espiral. Para acessar o lado de dentro, tomado por árvores e decoração natalina, somente com controle remoto e autorização dos moradores. O cenário poderia descrever qualquer condomínio da cidade, mas representa uma rua, em tese pública, fechada por moradores para acesso de pedestres ou carros - prática proibida por lei, mas presente nos bairros de Fortaleza.

Uma das vias em questão é a Rua Sertão dos Inhamuns, no bairro Cidade dos Funcionários, que foi "privatizada" há mais de dez anos pelos residentes como "medida de segurança". "Era uma rua sem saída, e começaram a aparecer garrafas de cerveja, preservativos usados, roupas íntimas na frente das casas? Falamos com órgãos de segurança, mas nada foi feito. Então nos organizamos e colocamos o portão", explica Stélio Ramalho, 43, proprietário de uma das seis casas que formam o "condomínio informal".

Antes, a rua era de livre acesso. Agora, só entram moradores e pessoas identificadas, já que cada casa tem um interfone. As caixas de correio também ficam do lado de fora, numeradas conforme a disposição antiga das residências. A manutenção da via, segundo Stélio, é responsabilidade dos "condôminos", que reconhecem se tratar de via pública. "Não tem como negar, mas não sabíamos que era proibido por lei. Já tentamos até regularizar na Prefeitura, mas não conseguimos", afirma o administrador.

Punição

A empresária Miriam Espíndola, 69, que reside na mesma rua, revela que a via já recebeu diversas visitas da fiscalização municipal - mas nenhuma sanção ou multa foi aplicada até hoje. "Se o governo fosse mais atento à questão da segurança, isso não aconteceria. Essa casa da frente é desocupada, virou um antro de marginais. Pode ser proibido fechar a rua, mas não faz mal a ninguém, porque a gente adotou e cuida", argumenta. Pelo menos, outras duas ruas no mesmo bairro e outra no Centro da cidade foram identificadas com o mesmo perfil pela reportagem.

De acordo com o gerente de elaboração de planos de fiscalização da Agência de Fiscalização de Fortaleza (Agefis), Márcio Bezerra, não existe exceção ao artigo 672 da lei nº 5.530: "embaraçar ou impedir, por qualquer meio, o livre trânsito de pedestres ou veículos nos logradouros públicos" é proibido sob qualquer circunstância. Em caso de flagrante, todos os moradores são advertidos, mas um deles precisa se responsabilizar pela infração: uma multa que varia de R$ 83,85 a R$ 4.167,50.

"O acesso é público, irrestrito, mas infelizmente existem essas situações. Quando há denúncia, fiscalizamos, a pessoa é autuada e precisa alterar essa intervenção. Notificamos e é dado um prazo de dez dias para remoção da barreira física. Se a infração persistir, a multa vai aumentando pela reincidência. Isso também serve para colocação de trilhos, mesas e cadeiras nas calçadas", esclarece o gerente da Agefis, informando ainda que "intervenções na via pública só são possíveis pontualmente, para eventos, por exemplo, e mediante autorização da gestão municipal".

Desagregar

Para a coordenadora do Curso de Arquitetura e Urbanismo da Unifor, Camila Girão, o fechamento de ruas públicas "é ilegal e inadmissível", mas é preciso compreender o que desperta o interesse dos moradores de "cercear" um espaço da cidade às demais pessoas. "A principal questão não é nem o impedimento da acessibilidade, mas esse ideal de uma tipologia de morar que é desagregadora, em que as pessoas procuram se fechar em ambientes privados e desprezam o espaço público em nome da segurança".

Além dessa fuga à violência, opina a urbanista, a "queda de braço" entre os limites de espaços públicos e privados esbarra em interesses abstratos. "Isso desperta outros valores além da segurança, como busca por status. Existe uma relação de produto e poder, nessa vontade das pessoas de viver em espaços fechados. A segurança vem como mais um argumento. E, assim, a cidade vai sendo desagregada como estrutura pública, coletiva. Esse efeito é o mais preocupante", lamenta Camila.

Os destaques das últimas 24h resumidos em até 8 minutos de leitura.
Assuntos Relacionados