Mesmo após deixar de ser crime, mendicância continua castigando

Desde 19 de julho de 2009, há quase 10 anos, a prática de pedir esmola não é mais enquadrada na Lei de Contravenções Penais. Mesmo assim, pedir ainda é sinônimo de ociosidade e ato para o qual não há políticas públicas específicas

Escrito por Redação , metro@verdesmares.com.br

Às cinco da manhã, Maria da Conceição, 54, sai para buscar pães para a família, mas só retorna após o almoço. Seu compromisso de todo dia é com a calçada de uma padaria na Avenida Domingos Olímpio. Com mãos e coração abertos, Maria recebe qualquer moeda de R$ 0,10. Aquele que mendigasse, por ociosidade, de modo vexatório ou ameaçador, simulando moléstia ou deformidade e com um menor de 18 anos, se enquadrava no Art. 60 da Lei de Contravenções Penais até o ano de 2009.

No dia 17 de julho daquele ano, pedir deixou de ser infração penal em todos os casos. Quase 10 anos depois, estar em situação de mendicância ainda é carregar o peso da invisibilidade. "Tem motorista que baixa o vidro e, quando a gente se aproxima, nos manda ir trabalhar. Dizem que somos vagabundos", reflete Gleyson Delfino, 37, impossibilitado de trabalhar por dores que vêm de um cateter que precisa ser removido.

Situação

De acordo com uma pesquisa nacional realizada pelo Ministério do Desenvolvimento Social (MDS), 1.701 pessoas estavam em situação de rua em Fortaleza, em 2007. Em todo o País, somente 15% dos identificados eram pedintes, diferentemente do imaginário popular, onde os dois públicos se misturam. Maria da Conceição, por exemplo, tem um lar, na Barra do Ceará, e costura panos de prato, que também vende enquanto pede. "Um dá, o outro não, eu só entrego a Deus, né? Mas é muita humilhação", analisa Conceição.

A mistura dos perfis é um empecilho na fomentação de políticas públicas para ambos. Para o titular da Secretaria dos Direitos Humanos e Desenvolvimento Social de Fortaleza (SDHDS), Elpídio Nogueira, um novo censo sobre a população de rua da cidade deve amenizar a problemática.

"Já estamos a trabalhar para saber qual é o perfil de quem está em situação de vulnerabilidade", desenvolve. O último censo de Fortaleza é de 2014.

Mesmo uma década após o Caso de abolitio criminis (quando uma lei nova descriminaliza um fato antes tido como delito), pedintes relatam a insensibilidade com que são interpretados. "Já levei surra, cortes, aprendi que o cara tem que saber pedir 'na limpeza', direitinho", relata Bruno Jesus, 21 anos. "Existem duas formas de dizer 'não' a um pedinte: educadamente ou enxotando, o que não permitimos em nossos equipamentos. Em alguns locais proibidos, tentamos humanizar essa relação", explica Elpídio Nogueira.

Queda

A professora de Ciências Sociais da Universidade Federal do Ceará (UFC), Neyara Araújo, pensa que a mendicância ainda é proibida, hipocritamente. "As pessoas não caem nessa situação, elas escorregam. Não é fácil. Medo e ansiedade fazem parte da mendicância. Não é um ato de covardia, e sim de coragem. Se uma senhora diz que pede esmola para colocar a neta na escola, por mais que não seja verdade, ela pede esmola, ou pede escola?", enumera.

O coordenador do Centro de Apoio Operacional da Cidadania (Caocidadania) do Ministério Público do Estado do Ceará, promotor de Justiça Hugo Porto, garante que é preciso entender as especificidades de quem ganha pedindo. "Mendicância é uma violação da dignidade humana. Nós nos empenhamos em conhecer esses perfis".

Restaurante

Um restaurante popular voltado à população vulnerável está previsto para o Centro de Fortaleza, segundo o secretário da SDHDS. José Raimundo poderá ser um dos beneficiados. O flanelinha pede dinheiro nas proximidades de onde reside, na comunidade do 'Pau Pelado', para pagar o aluguel de R$ 10 por dia.

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