Força coletiva

Projetos e ações coletivas transformam vidas em bairros da Capital. Enquanto na política institucional o momento é de disputa e indefinição, na realidade cotidiana, as micropolíticas protagonizadas por anônimos desconstroem estigmas em áreas periféricas e geram oportunidades

Escrito por Thatiany Nascimento , thatiany.nascimento@diariodonordeste.com.br

As vidas que hoje aguardam a decisão das urnas, no dia a dia, em geral, não se reduzem aos rumos ditados pela política institucional. As exigências concretas do cotidiano, sobretudo, em áreas periféricas de Fortaleza, põem em xeque a competência desta "representação". Carentes historicamente de políticas públicas efetivas, esses territórios veem nos próprios moradores anônimos, inquietações capazes de promover mudanças.

Se o cenário macropolítico ainda é de indefinição, o cotidiano e sua micropolítica exigem que ideias se traduzam em práticas. Quem nasce ou habita os bairros de pouca infraestrutura, sabe que neles - mais do que em outros -, para não sucumbir à fatalidade dos estigmas, é preciso apostar na criatividade e desenvolver iniciativas que ressignifiquem as chances e experiências.

Espalhadas em bairros como Jangurussu, Barroso, Sabiaguaba, Pirambu, Serviluz, Barra do Ceará, Bom Jardim e Carlito Pamplona, pessoas desconhecidas, organizadas em coletivos, tentam dar vazão às demandas sociais históricas, e, ao fazerem isso, têm gerado oportunidades.

Na lista de conquistas há: bibliotecas comunitárias, formação de grupos de convivência com adolescentes em situação de vulnerabilidade, projetos esportivos com crianças, realização de oficinas, trabalhos artísticos, saraus, rodas de conversa e leitura e coleta de resíduos no mangue. Ações garantidas em espaços mantidos e financiados por moradores desses territórios ou por redes de colaboração que se estendem por toda a Capital.

Dinâmica

No Barroso, onde a violência é marca recorrente nos discursos, apostar em uma biblioteca comunitária parecia "delírio". Felizmente, a inquietação do dia a dia ajudou a desconstruir a realidade tão fatalista. A ideia era criar um clube do livro que, quando brotou em um prédio alugado na Avenida Capitão Waldemar de Paula Lima, nasceu como Biblioteca Viva. O espaço conta com um acervo de 2.500 exemplares, formações, além de cerca de 700 acessos de visitantes em pouco mais de 2 anos de existência.

A iniciativa de um grupo de sete moradores do bairro ganhou corpo e nas tardes de terça, quinta, sexta e sábado, a biblioteca construída coletivamente, se enche de vidas. Os livros, que vão da literatura internacional a obras de ciências sociais são emprestados gratuitamente. Sem registro. Para que quem busque o local, retorne, baseado apenas no pacto de confiança.

"Quando a biblioteca abriu, a gente ouvia: Ah! Finalmente tem alguma coisa aqui! É como se as pessoas vissem que faltava algo no bairro e sabemos que faltam políticas que deem atenção aos que deveria ser o coração do bairro", diz Raphael Rodrigues, professor e idealizador da biblioteca.

Se no Barroso os livros atraem o público de todas as idades, na Sabiaguaba, na comunidade tradicional Boca da Barra, eles também são instrumentos de aproximação e desenvolvimento para moradores inquietos com aquilo que a realidade parece determinar para quem ali reside.

A Casa de Camboa, cedida e idealizada pela fotógrafa Viviane Siade, é exemplo dessa aposta. O espaço abriga uma biblioteca pública e funciona como sede para as mobilizações da comunidade. No local, além do acervo literário, os habitantes têm acesso às atividades educativas, culturais e lúdicas. Um dos projetos, chamado "Sabiaguaba Lixo Zero", utiliza o espaço para articular formações, relata o pescador, Roniele da Silva.

Mobilização

"A gente sabe que o manguezal tem muito 'lixo invisível' e não adianta limpar as praias e não limpar o mangue. A gente junta a comunidade e usa a casa para organizar essa limpeza", conta Roniele, apostando que essa mobilização, política por natureza, é a forma justa de defender o meio ambiente e proteger a própria sobrevivência da comunidade.

No Jangurussu, na Comunidade Santa Filomena, a agente de saúde, Aline Souza, pela própria condição profissional depara-se com inúmeras demandas e situações vulneráveis. Nessa atuação, para alterar o destino previsto como certo para quem padece com a baixa renda, a pouca escolaridade e a lacuna de oportunidades, ela organiza no Conselho Nova Vida, associação sem fins lucrativos, atividades para crianças e adolescentes.

São ações culturais, capoeira, boxe, atividades com Farmácia Viva, rodas de leitura, dança, surgidas, explica Aline, "a partir de demandas que o Jangurussu tem. Demandas da própria comunidade".

A conjuntura política, admitem esses moradores, tem impactado as atuações. Mas, ainda que interfiram nos direcionamentos institucionais, não é capaz de desmobilizar quem se organiza coletivamente. "Não vamos esmorecer. Porque se a gente recuar vai ser mais difícil", reforça Aline.

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