Dos leitos manicomiais às redes de atenção

Portarias do Governo Federal levaram profissionais da saúde mental a ficarem contra o aumento de diárias para os hospitais psiquiátricos

Escrito por Cadu Freitas - Repórter ,

Foi com o Asilo dos Alienados (atual Hospital Psiquiátrico São Vicente de Paulo), fundado em 1º de março de 1886, que a história da loucura começou a ser escrita em terras alencarinas. Por meio de uma caneta imaginária e um conjunto de pessoas-teste, Fortaleza acompanhou a tendência mundial de criação de espaços voltados a pessoas com sofrimentos psíquicos.

O modelo hospitalocêntrico, cuja proposta é ter o hospital psiquiátrico como foco do sistema de saúde mental, começou a ser modificado 100 anos após a fundação do São Vicente, a partir da inauguração do primeiro Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), em São Paulo.

No entanto, a retirada do protagonismo dos hospitais psiquiátricos foi efetivada com a Lei nº 10.216/2001, conhecida como Reforma Psiquiátrica. Dentre outros aspectos, ela promove a sociabilização do serviço e garante a retirada gradual dos leitos manicomiais após várias acusações de desrespeito aos direitos humanos e violência contra os internos. Pelo menos até 2017.

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No fim do ano passado, o Ministério da Saúde, por meio de uma série de portarias, começou a modificar alguns pontos das diretrizes de saúde mental implantadas no Brasil. A proposta da Pasta é destinar cerca de R$ 320 milhões para a área, investindo na atenção primária, em habilitações e construções de novos CAPS, além da expansão da rede de atendimento. A polêmica, contudo, não se concentra no incremento a esses serviços, mas na proposta do Ministério da Saúde em aumentar as diárias concedidas a hospitais psiquiátricos - relativas aos internos desses locais - por meio do Sistema Único de Saúde (SUS). Setores da área de psiquiatria encaram a atualização do valor como retrocesso, pois consideram que ela incentiva os manicômios e tende a aumentar o número de vagas nesses locais.

O Ministério defende que o valor das diárias estava defasado há nove anos e promete fortalecer a 'desospitalização', "buscando ampliação da rede substitutiva e reduzindo de forma gradativa a presença de moradores nos hospitais". Segundo a Pasta, "o processo de saída de pacientes moradores desses hospitais vai continuar, seguindo os preceitos da Reforma Psiquiátrica".

Leitos

Em Fortaleza, três hospitais nesses moldes ainda funcionam, sendo os únicos em todo o Estado. O São Vicente de Paulo, mantido pela Santa Casa de Misericórdia, dispõe de 130 leitos para internação financiados pelo SUS, enquanto a Casa de Repouso Nosso Lar, no Benfica, possui 240 vagas - 160 delas do SUS e 80 particulares. O Governo do Ceará mantém o Hospital de Saúde Mental Professor Frota Pinto, na Messejana, cujos leitos correspondem a 180, além de 60 vagas de hospitais-dia - quando o paciente usufrui dos serviços diurnos e volta para casa à noite.

O São Vicente recebia R$ 49,70 por paciente a cada dia antes das mudanças ministeriais; agora o valor aumentou para R$ 82,40. O Frota Pinto e o Nosso Lar embolsavam R$ 42,37 com o valor da diária; no momento, o incentivo subiu para R$ 70 por interno.

O recebimento, levando em conta todos os pacientes dos três hospitais psiquiátricos, aumentou cerca de 65% com a nova portaria do Ministério da Saúde. Contando apenas os pacientes financiados pelo SUS, o São Vicente recebia R$ 6.461 e agora acumula R$ 10.712 por dia. O Nosso Lar tinha uma receita diária de R$ 6.779,20 e ganha agora R$ 11.200. O Frota Pinto, por sua vez, subiu o valor de R$ 7.626,60 para R$ 12.600.

Lados opostos

"O primeiro golpe é a permanência dos hospitais psiquiátricos porque a legislação prevê a extinção progressiva dos leitos. Dessa forma, a própria Lei acaba sendo negada, isso pelo Ministério da Saúde, por apostar na manutenção do hospital", considera o psicólogo Ronaldo Pires, integrante do Fórum Cearense da Luta Antimanicomial.

De acordo com ele, as modificações "são autoritárias", pois "não dialogam com nenhum dos setores que têm pensado e refletido sobre a política". Para o psicólogo, as questões são "sem base, inclusive, na perspectiva dos usuários, pois a própria mudança não está baseada em evidências científicas que justifiquem essa alteração".

Do lado oposto, o superintendente técnico da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), Antônio Geraldo da Silva, considera as modificações importantes para a área da saúde mental, inclusive, com a manutenção dos hospitais psiquiátricos na rede de atendimento.

"A diária anterior variava de R$ 35 a R$ 49, isso não paga diária de estacionamento de carro, então é absurdo, isso automaticamente levou ao fechamento de hospitais por asfixia financeira", considera Antônio Geraldo da Silva, ao defender que o ponto mais importante é o escalonamento desses valores.

As portarias do Ministério da Saúde garantem diminuição de 50% do incentivo após 90 dias de internação do paciente. Segundo o superintendente da ABP, o lado negativo é a "insistência de ideólogos" de voltar a uma política que não apresentou resultados. "Nenhum lugar do mundo tem CAPS como modelo de atendimento. Hoje, temos pessoas que estão há 30 anos nos Centros, isso não é uma forma de pequenos manicômios?", questiona o psiquiatra.

Entretanto, Ronaldo Pires pontua que o modelo praticado no Brasil é referência mundial e funciona, mas, como toda política pública, possui problemas. "A desassistência que tem sido criticada por outras entidades é derivada muito mais da falta de financiamento por parte dos gestores do que propriamente do serviço", critica o psicólogo.

Rede fortalezense

A gerente da célula de Saúde Mental da Secretaria de Saúde do Município (SMS) de Fortaleza, Ytanna Queiroz, também considera as novas diretrizes do Ministério um retrocesso. "O Brasil não admite mais essa forma de cuidado que não era cuidado, defendo a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) para que ela seja humanizada", acredita.

Apesar de reconhecer que a quantidade de equipamentos dispostos na cidade tendo como modelo a sociabilização do atendimento é insuficiente, a gestora reflete que a Saúde é desafiadora para qualquer nível de poder, seja ele municipal, estadual ou federal. "É a área mais utilizada pela população e essa equação nunca vai ser perfeita porque vivemos em um país muito desigual", reflete.

Enquanto a RAPS de Fortaleza disponibiliza 161 vagas em equipamentos diferentes por toda a cidade e não conta com nenhum leito psicossocial em hospitais gerais, só os três hospitais psiquiátricos da cidade ofertam 470 vagas para internações, de acordo com a Secretaria da Saúde do Estado do Ceará. Quase três vezes o número de espaços descentralizados.

Dificuldade

"Uma das grandes dificuldades é avançar com os leitos dos hospitais gerais porque você tem de ter uma equipe preparada. Aqui em Fortaleza, há o planejamento de pactuar alguns leitos psicossociais, mas ainda está em fase de análise, de planejamento", informou Ytanna Queiroz.

Além desses serviços, a Prefeitura de Fortaleza também firmou convênios com entidades sem fins lucrativos da Regional I e da Regional V a fim de criar ocas de saúde comunitária.

Esses espaços são voltados a pessoas que não têm perfil para serem atendidas nos CAPS, mas passam por alguma situação mental complicada. De acordo com Ytanna, "os CAPS são tidos como os vilões, mas estão sobrecarregados de pessoas que não deveriam estar lá, e, sim, na atenção primária, então a ideia é melhorar esse fluxo do usuário na rede como um todo".

Fique por dentro

Como funciona a Rede de Atenção Psicossocial

Os CAPS I e II atendem pessoas com transtornos mentais graves ou persistentes e/ou com necessidades decorrentes de psicoativos, enquanto o CAPS III atende o mesmo público em regime 24 horas.

O CAPS i atende crianças e adolescentes com foco nos que possuem sofrimento grave ou persistente e/ou fazem uso de psicoativos.

CAPS AD e AD 24 horas atendem apenas crianças, adolescentes e adultos que fazem uso de psicoativos.

Unidades de acolhimento, por sua vez, são voltadas a adultos ou crianças e adolescentes que fazem uso de psicoativos.

Residências terapêuticas são casas inseridas na comunidade voltadas a pessoas com sofrimento psíquico egressas de internações longas.

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