Crianças se dividem entre sonhar com direitos e futura profissão

Quando ainda é cedo e a pureza protege a inocência, blindagem difícil de romper, imaginar e sonhar são verbos-chave, mas revelam, além dos desejos, necessidades básicas não atendidas

Escrito por Theyse Viana , theyse.viana@diariodonordeste.com.br

Bastam poucos dedos para contar os breves anos de vida, alguns mínimos centímetros para ultrapassar um metro de altura, e dentes minúsculos para desenhar um sorriso largo. Quando o assunto é criança, porém, a contradição logo aparece: é aos pequenos que pertencem os maiores sonhos, e é só deles a habilidade de querer, da forma mais crente e esperançosa possível, ganhar o futuro embalado como presente. É só deles a sabedoria que constrange qualquer diminutivo, apesar de abrigada em corpos tão miúdos.

Para algumas crianças, aliás, ser gigante é característica congênita, incrustada no nome, corrente no sangue: é o caso de Magnus, do latim "o grande", que já escolheu uma missão a cumprir na vida, mesmo tendo passado por apenas seis anos dela.

Sabedoria

O menino, nascido em Ipaporanga, município do Sertão de Crateús, vive há um ano entre idas e vindas a Fortaleza para realizar o tratamento de leucemia linfoide aguda (LLA) na Associação Peter Pan, entidade que auxilia crianças e adolescentes no combate ao câncer.

O diagnóstico veio em dezembro de 2017, junto à febre constante, às manchas roxas e à palidez. "Desde o primeiro momento, ele já parecia preparado, acostumado, como se já soubesse que teria que passar por isso. Já perdeu o cabelo, voltou, agora tá com a medula limpa e tem alta chance de cura, mas todo cuidado é pouco", declara a mãe, Naiane Gomes, 23, que ainda se surpreende com a força do filho durante as viagens à Capital a cada 21 dias para acompanhamento multiprofissional.

Projetar

O sonho dela é tão simples quanto óbvio: vê-lo curado. Já o de Magnus Gabriel, assim como ele, é gigante, indo muito além de si mesmo. "Eu tenho meu sonho que é ser doutor, porque eu quero ajudar todo mundo que é doente. É muito bom ajudar as pessoas, é legal. Lá na minha cidade, não tem doutor, só enfermeira. Quero ser doutor pra trazer todas as saúdes de todo mundo!", exclama da forma mais grandiosa, sincera, objetiva e bonita que uma criança de seis anos consegue dizer.

Para "ser doutor" como tanto almeja, porém, ele sabe: precisa voltar a estudar. E para poder retornar à sua casa no interior e à rotina comum de escola - agora interrompida pela de hospitais -, precisa da cura. "Eu brincava, fazia tarefinha. As doutoras? Ô! As professoras que eu mais gostava? Esqueci o nome delas. Mas eu achava muito legal ficar lá".

A mesma rotina do ambiente escolar infantil é descrita por Guilherme Levi, 6, que até gosta de "fazer a tarefa e ler", mas alimenta o lazer e os próprios sonhos durante as férias, quando anda de bicicleta e "joga muito futebol" na Areninha do Pirambu, bairro onde mora.

Três vezes por semana, a participação em um dos projetos sociais que utilizam a quadra e o campo da comunidade, de frente para o mar, é sagrada, mesmo "fazendo gol só no treino", e não nas disputas entre os times de pequenos.

"Eu tenho um sonho de ser o jogador do Fortaleza, o Gustagol. Não, de ser o melhor jogador do mundo. Quero jogar no Real Madrid e no PSG (Paris Saint-Germain)", revela o menino, fugindo ao padrão e negando ser fã do brasileiro Neymar. "E eu também tenho um sonho que é ganhar um computador, pra eu jogar, baixar todos os jogos que eu gosto, de futebol e da polícia, e estudar também", sorri o garoto, ao mesmo tempo tímido e empolgado, agarrado à bola de borracha que chuta sem cessar, causando um encanto indescritível nessas linhas.

O direito básico à educação, incluso tanto na Constituição Federal como no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), se traveste mesmo é de sonho para Fernanda da Silva, 11, que perdeu a casa, o ano letivo escolar e hoje mora na ocupação da antiga Escola Jesus, Maria e José, no Centro, com a mãe e o padrasto - cujas condições financeiras não permitem mais pagar aluguel, restando como única alternativa morar em um prédio público abandonado.

Céu-teto

Na sala de aula desativada utilizada como teto - cenário de telhas e janelas quebradas, mofo e frio, muito distante de ser um lar -, o único letramento disponível à menina são os resquícios do passado: o alfabeto riscado a lápis de cor e o nome das famílias que a habitaram antes, tudo escrito nas paredes rachadas, em constante ameaça de desabar.

Contradizendo tantas crianças da mesma idade, cujas férias e o término das aulas são os momentos mais esperados, o que Fernanda almeja está no oposto, na ponta da língua: "Eu tenho um sonho de voltar pra escola. Eu parei de estudar pra vir pra cá, mas quero voltar e estudar pra ser delegada", dispara de imediato, como resposta-tiro.

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