Consumo exagerado de álcool exige atenção nos dias de folia

Substância associada à desinibição e a festas vitimou quase 1.300 cearenses entre 2014 e 2016

Escrito por Nícolas Paulino - Repórter ,

O volume faz tremer os alto-falantes do paredão e batuca nos tímpanos as músicas mais esperadas do Carnaval. O corpo acompanha, em dança, as notas musicais. Agarrado pela mão, o copo se esvazia. A garrafa se entorna com gosto de quero-mais. Mais cerveja, mais pinga, mais catuaba. Mais uma dose de vodca, vai, porque não vai fazer diferença. De gole em gole, os riscos do uso abusivo do álcool se avolumam e põem em risco funções vitais dos foliões que exageram na bebida em praias e blocos de rua, principais destinos dos cearenses durante a folia.

A ameaça da substância é silenciosa, mas vitima. Entre 2014 e 2016, 1.274 pessoas morreram no Ceará em decorrência de "Transtornos mentais e comportamentais devidos ao uso do álcool", segundo o Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM), do Ministério da Saúde. Em 2014, foram 504 óbitos; em 2015, 468, e, em 2016, 302. Estes últimos, porém, ainda são dados preliminares, segundo a Pasta.

Os óbitos cearenses representam 6,7% do total do País, no mesmo triênio, quando 19.016 pessoas perderam a vida: 6.095 em 2016, 6.421 em 2015 e 6.500 em 2014. Segundo o Ministério, o óbito ocorre em decorrência do uso abusivo da substância, trazendo complicações tanto físicas, como intoxicação, ou psíquicas, tais quais episódios depressivos secundários.

Pesquisa de Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico (Vigitel) 2016, divulgada em 2017, revelou que, dos fortalezenses entrevistados, 17,1% assumiram ter feito o consumo abusivo de bebidas alcoólicas numa mesma oportunidade. O percentual foi maior entre os homens: 28% apresentaram ingestão excessiva, contra 8% das mulheres.

A Vigitel considerou como "consumo abusivo" a ingestão de cinco ou mais doses de bebida alcoólica, para homens, ou quatro ou mais doses, para mulheres, numa mesma ocasião, pelo menos uma vez, durante um período de 30 dias. Para a pesquisa, "uma dose" corresponde a uma lata de cerveja, uma taça de vinho ou uma dose de cachaça ou bebida destilada.

Para o professor de Psicologia da Universidade Federal do Ceará (UFC) em Sobral, Paulo Henrique Quinderé, o consumo excessivo é endossado pelo propagandístico Brasil do sol e da cerveja, no qual o consumo de álcool per capita dentro da população maior de 15 anos chegou a 8,9 litros, também em 2016, superando a média internacional de 6,4 litros por pessoa, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS).

ARTE
Hábitos

"Nós temos uma estrutura social que viabiliza o consumo desorganizado. Não há preocupação, principalmente de quem comercializa, para que haja um uso moderado", defende, lembrando o ditado de que "a diferença entre o remédio e o veneno é a dose" e que é preciso entender, primeiramente, como o indivíduo se relaciona com a substância dentro de seu contexto social.

O Carnaval, para o especialista, é uma das principais ocasiões em que a mídia promove o apelo à ingestão de bebidas. Para isso, o interlocutor é seduzido não só pela substância, mas também pelas representações atreladas a ela. "O álcool é símbolo de festa e surge como uma forma de extravasar os sentimentos e de se afirmar socialmente, de ser o mais poderoso, aquele que se solta e aparece mais".

O estudante Fernando (nome fictício), 24, que mora em Fortaleza, viveu momentos delicados em Olinda (PE), onde decidiu passar o Carnaval do ano passado. Alternando doses de cachaça, vodca e cerveja, ele desmaiou e precisou ser socorrido numa ambulância. No hospital, ele passou a tarde desacordado e chegou a tomar três bolsas de glicose para voltar à consciência, por volta das 20h.

"Pra mim, foi necessário o consumo não pela questão da diversão em si, mas pelo calor que fazia nas ladeiras. Por que não água? Porque era muito mais cara que cerveja - pelo menos, nas ladeiras, era assim", relata. "Eu acho que você não precisa beber pra se divertir, mas o álcool intensifica as sensações e ajuda sim, a perder a inibição, então facilita a 'chegada' nas pessoas".

Vulnerável

Conforme o Ministério da Saúde, episódios de uso abusivo do álcool podem se associar ao infarto agudo do miocárdio, quedas, gastrite, tentativas de suicídio, sexo desprotegido e agressividade, decorrentes de aspectos como desinibição, comprometimento cognitivo e piora da capacidade de julgamento.

"Infelizmente, a nossa cultura é do 'beber, cair e levantar'", alfineta o professor Paulo Quinderé, salientando que as pessoas não costumam se hidratar, se alimentar ou descansar durante os festejos carnavalescos. Até mesmo quem não faz uso constante do álcool está vulnerável, em situações conhecidas como "beber pesado episódico" (BPE): "a pessoa demora a beber, mas, quando o faz, toma todas".

Embriaguez também preocupa na estrada

As implicações do abuso do álcool também podem alcançar o nível coletivo, quando descambam para a violência, incluindo os acidentes de trânsito. Durante o Carnaval do ano passado, 419 condutores foram autuados pela Polícia Rodoviária Estadual (PRE), e mais 45 pela Polícia Rodoviária Federal (PRF), pelo mesmo motivo: embriaguez ao volante em rodovias cearenses. Em 2016, haviam sido 567 e 46 autuações, respectivamente.

A perigosa dupla álcool e direção também inquieta o Ministério da Saúde. Contudo, a sensibilização promovida por campanhas de órgãos de trânsito esbarra na carência de informações atualizadas sobre o tema. De acordo com a Pesquisa Nacional de Saúde 2013, última do gênero realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 30,7% da população cearense com mais de 18 anos relatou pegar na direção logo após a ingestão de bebidas alcoólicas.

No Instituto Dr. José Frota (IJF), maior centro médico de urgência e emergência e referência no atendimento de traumas em Fortaleza, o número de assistências a motociclistas envolvidos em sinistros no período de Carnaval caiu de 186, em 2016, para 155, em 2017. Já os atendimentos a motoristas de automóveis acidentados subiram de 59 para 78, entre um ano e outro. A reportagem entrou em contato com a unidade hospitalar para esclarecer a relação entre os acidentes e o estado de embriaguez dos motoristas, mas não obteve retorno até o fechamento desta edição.

Enquanto isso, tramita no Senado Federal o projeto de lei 599/2015, que determina a apreensão do carro do motorista embriagado ou sob efeitos de drogas que se envolver em acidente com morte, lesões corporais ou danos a terceiros. Assim, o veículo pode ir a leilão e, o dinheiro arrecadado, ser usado para indenizar as vítimas e pagar as despesas com o processo.

Os destaques das últimas 24h resumidos em até 8 minutos de leitura.