Conjunto Ceará revê o passado à base de luta

O conjunto dentro de um bairro se emancipou e há quem diga que, hoje, funciona até como cidade

Escrito por Redação ,
Há pouco mais de 40 anos Fortaleza foi pioneira em ver parte de seus habitantes inventarem o que se tornaria quase que seu próprio pai: o Conjunto Ceará. Em 1977, 996 casas foram entregues no que seriam duas etapas de um projeto que visava amenizar a problemática do déficit habitacional na cidade, preocupação para o Regime Militar instaurado no país. Hoje, 42.894 pessoas ocupam as quatro etapas do bairro com ares de interior e visão futurista. 

Os primeiros moradores foram sorteados pela Companhia de Habitação do Ceará (Cohab) e, dependendo da renda da família, ganharam tipos A,B,C ou D de residência, com quantidade de compartimentos diferentes. Atualmente são 390,7 hectares, 11 avenidas e mais de 300 ruas. As etapas são organizadas em 12 Unidades de Vizinhança (UVs) e em “centrinhos”, com praças, comércios, escolas e locais para lazer. “Uma verdadeira cidade-bairro”, define o secretário da Regional V, Ronaldo Nogueira. 

“Tem banco, escola, hospital, comércio…É um bairro que se tornou independente do Centro da cidade, fazendo com que as pessoas não precisem se deslocar para realizar as suas necessidades com qualidade de vida, num claro modelo de cidade para o projeto Fortaleza 2040. No Conjunto Ceará as pessoas nascem, vivem e sobrevivem”, complementa o secretário. 

A balança

O comércio é, de fato, aspecto forte no local. José Barros Crisóstomo, 61, mora no bairro desde seu início e, ao chegar, sentiu falta de uma drogaria, abrindo então a primeira (e por tempos única) farmácia do local. “Não pode entrar sem se pesar nessa balança, ela tá aqui há 40 anos”, brinca. Eleito presidente do conselho de moradores, ainda na década de 1980, se viu na obrigação de desvincular o conjunto da Granja Portugal, bairro do qual a ainda rede habitacional fazia parte. 

“Como eu conhecia muita gente, uns 12 moradores me empurraram para a frente dessa missão. Eu fui e fiz acontecer, em menos de dois meses, a transformação em bairro. Ciro Gomes era quem governava o Estado na época, e nos devia muito porque foi eleito, basicamente, por causa dos votos saídos daqui do Conjunto”, remonta o dono da farmácia pioneira, que tem seu mesmo nome. 

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Os pilares do monumento, instalado na principal avenida, representam as 4 etapas do bairro (Foto: Fabiane de Paula)

Ao ganhar a casa, assim como tantos outros quatro décadas atrás, Seu Crisóstomo pensou duas vezes em aceitar, devido à distância que fazia com que qualquer um acumulasse barro e massapê nas botas. Não existia estradas, vias, ligações. Ponto de ônibus era sonho. Era preciso atravessar o bairro com água estocada para, ao chegar no trabalho, limpar os pés. Tudo melhorou. Até mesmo um terminal próprio de integração o Conjunto Ceará conquistou. Durante a escolha de moradores para a quarta etapa, eram tantos inscritos que quem conseguisse praticamente ganhava na loteria.

“E tudo foi pela luta da própria população. Para se ter uma ideia, a gente já teve encontro com representantes do poder público aqui mesmo, fazendo eles saírem da Câmara e da Assembleia. Toda essa força só mostra uma coisa, que nenhum outro bairro em Fortaleza se desenvolveu tão rápido quanto o Conjunto Ceará. Quem vive aqui diz e repete: só saio quando Deus levar”, adianta o morador Pedro Sampaio. 

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Seu Crisóstomo fundou, nos anos 70, a primeira Farmácia do bairro. As memórias e a mesma balança resistem no local Foto: Fabiane de paula

Cuidado

Verdadeiros patriotas. É assim que Ronaldo Nogueira define os moradores do bairro. “Eles cobram mesmo, ligam mesmo, e isso é incrível porque nos ajuda a trabalhar”, emoldura. Os problemas, segundo ele, são de ordens culturais e educacionais. O lixo nas vias públicas, a falta de iluminação, o cuidado com as áreas verdes, por exemplo. 

A Lei 6.504 de 11/10/89, de iniciativa dos então vereadores Gorete Pereira, Inácio Arruda e Sérgio Novais, foi sancionada para dar, oficialmente ao Conjunto Ceará, o título de bairro. De lá para cá, o movimento de cidadania inspirou e passou de geração para geração, proporcionando melhorias no gigantesco lugar que só não tem em suas dependências, ainda, um cartório. 

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Marcos Rodrigues traz na carteira o que comprova: o terreno da família foi conseguido por direito pela COHAB (Foto: Natinho Rodrigues) 

A cultura e o lazer também são fortes no Conjunto. Diógenes Madeira, 49, é coordenador do Grupo da Paz, que já formou cerca de 5 mil jovens em música, dança e esporte. Ele é engajado desde a adolescência na luta democrática por mais assistencialismo ao bairro. “Já conseguimos muita coisa, reformas, melhorias. É cansativo, por vezes dá um desestímulo, mas quando eu penso em dar um ponto final, Deus me dá mais dois e vira reticências”, desenha Diógenes. 

O verde tem lugar e respeito. Ivan Patrício Soares é artesão e desenha com destreza o que vê nascer em sua cabeça: se depender dele, a Praça da Democracia, na 2ª Etapa do Conjunto, terá vida longa. “Aqui não tem vereador, não tem poder público. As cercas, garrafas e flores, tudo é cuidado pela vizinhança unida”, explica. Por lá, falta a melhoria na quadra, mas sobra coletividade. São festas juninas e natalinas, missas e celebrações de dia dos namorados. A Praça, historicamente depredada, virou anfitriã dos bons momentos. 

O morador Marcos Rodrigues, que também já fez parte do Conselho, deixa os olhos que brilham contarem sua história por ele. Guarda até hoje o registro de parte da quitação do terreno que conseguiu em 1977. “Foi com muita custa que minha família, vinda do Interior como a grande maioria delas, conseguiu nossa casa. Um tempo depois quiseram leiloar alguns imóveis”, lembra, com o documento de 1978 em mãos . O que antes era alcançado com suor, hoje é direito assegurado pelo Estado. O programa Papel da Casa, iniciativa da Secretaria do Planejamento e Gestão (Seplag) do Governo do Ceará, entregou 1.037 escrituras de propriedades para três conjuntos, incluindo o Ceará. (Colaborou João Duarte)

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