Centros de recuperação utilizam a espiritualidade como terapia

Mais de 95% das entidades utilizam o preceito, conforme levantamento do Ipea. Rotina regrada tenta diminuir a ansiedade causada pela abstinência e preparar os internos para atividades diárias após o prazo de tratamento

Escrito por Nícolas Paulino , nicolas.paulino@diariodonordeste.com.br

"Vinde a mim os cansados e os sobrecarregados e eu vos aliviarei", convida a citação bíblica logo à entrada da comunidade terapêutica (CT) Grão de Mostarda, no Eusébio, onde cerca de 65 homens tentam reconduzir a vida ao caminho que a dependência química apagou do mapa. No Brasil e no Ceará, a maioria das CTs se equilibra num tripé formado por convivência, trabalho e espiritualidade e é ligada a instituições religiosas.

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Meses de convivência nas CTs. Essa é a média de permanência nas comunidades conveniadas com o Governo do Estado. O ingresso é apenas voluntário. Existem CTs para homens, mulheres, mães nutrizes e adolescentes, segundo a SPD

"Deus faz coisas que você não entende o porquê. Não precisa questionar, apenas obedecer. Gosto mais de falar do que ele transformou na minha vida", discursa Carlos Bernardino, 29, egresso da Grão de Mostarda e "limpo" há sete anos - tempo em que, na memória, era "um nada". Mesmo frequentador de igreja evangélica desde criança, confessa que só se arrependeu no auge da adicção, aos 22. Sem forças para pedir ajuda, escutou no rádio o chamado de João Albuquerque, criador da comunidade. Às pressas, anotou o telefone no único objeto que encontrou pela frente: uma serrinha de unha.

O próprio João explica: "a intervenção de um poder superior só pode consolar quando você se rende". Em seis ocasiões, o potiguar se internou em casas de recuperação e, em outras seis, tentou o suicídio. Só depois de 2008, conseguiu se manter sóbrio e descobrir-se pastor "pra tomar conta de vidas". Desde então, passa pelo que chama de "cura diária", porque "se você voltar pra mentira, traição, pornografia, prostituição, você começa a se esconder de Deus".

Convicção

O diretor defende que a intervenção medicamentosa e o tratamento terapêutico são essenciais, mas podem andar lado a lado com a caminhada espiritual. "Cristocêntrico" assumido, não gosta de falar de religiosidade, para evitar "o choque de fé que ocorre em muitas casas", mas de espiritualidade. "Tem que ser fé com pé no chão, com a convicção de que Deus pode lhe ajudar, mas se você deixar", ressalta.

A espiritualidade também está na programação da Fazenda da Esperança, comunidade que hoje atende a 14 mulheres dentro do Condomínio Espiritual Uirapuru (CEU). Embora de berço católico, atende a pessoas de "todas as religiões", segundo a responsável Ana Lúcia Duarte. "Não é no sentido de confissão religiosa, mas de busca de sentido de vida. Na droga, as pessoas se acham poderosas, mas, baixando a consciência, elas podem ver seus erros e acertos e perceber que Deus é bem maior que tudo", declara.

"A palavra é o que me sustenta", revela a interna Fernanda Bonfim, 37. Todos os dias, uma frase retirada dos Evangelhos norteia as atividades da casa. "Muitas vezes, elas se contêm por causa da palavra. Tem que ter uma mudança de comportamento", explica Ana Lúcia. Fernanda sabe bem como funciona: quando chegou, há três anos, era "um bicho". Batia boca e se estressava à toa, resquícios de oito anos morando na rua.

Respeito

A "guerra interna" com Deus, nutrida desde os 11 anos, quando a mãe morreu, cessou no dia 22 de março de 2015. Às 5h, fumou a última pedra de crack. Às 5h15, o segundo filho nasceu. "Na mesa de parto, pedi pra Deus me perdoar e me ajudar a mudar de vida", conta. Depois dos 12 meses de internação, virou voluntária. "Pra mim, não existe mais lugar lá fora. Aqui, fui abraçada pelo Senhor e encontrei meu lugar no mundo".

Divulgado no ano passado, um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) mostra que o Ceará é o primeiro Estado do Nordeste e 6º do Brasil com maior número de CTs. À época dos registros, eram 82 comunidades terapêuticas - menos da metade das 168 que hoje podem ser mapeadas no Estado, segundo João Albuquerque.

A Secretaria Estadual de Políticas sobre Drogas (SPD) não possui controle sobre a quantidade total de instituições, "pois existem CTs que não são monitoradas, regulamentadas por nós", informa. Atualmente, a Pasta mantém, em todo o Estado, 19 convênios, ofertando 450 vagas.

Conforme a SPD, todas as 19 CTs têm vinculação religiosa. O estudo do Ipea avalia que o vínculo entre as religiões e o serviço não se trata de uma busca pela conversão religiosa dos internos, "mas de um meio para sua conversão moral, onde a fé no Divino e o apoio das escrituras sagradas do cristianismo são percebidos como aliados".

A Federação Brasileira de Comunidades Terapêuticas (Febract) considera que as CTs utilizam a religiosidade não como "mecanismo doutrinador", mas como instrumento para a modificação de "comportamentos destrutivos e autodestrutivos".

Já para o Conselho Federal de Psicologia (CFP), dado que o tratamento para transtornos decorrentes do uso de álcool e drogas é um processo de cuidado em saúde, "as bases que o regem não devem ser religiosas, mas laicas", a fim de evitar "violações do direito de pessoas que não compartilham daquela crença".

Entidades são fiscalizadas

Todas as Comunidades Terapêuticas conveniadas com a SPD devem seguir a regulamentação da RDC 29/2011, estabelecida pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que dispõe sobre os requisitos de segurança sanitária para o funcionamento de instituições que prestem serviços de atenção a pessoas com transtornos decorrentes do uso, abuso ou dependência de substâncias psicoativas. A SPD informou que realiza, ao longo do ano, ciclos de monitoramento nas instituições, "a fim de fiscalizar se estas estão funcionando na sua totalidade". Caso algum item esteja em desacordo, a Pasta procede com notificação e prazo para que a instituição se readeque.

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