Cearenses contam o que mudou um ano depois

Personagens de reportagem publicada na véspera do Natal de 2016 seguem seus sonhos. E você, leitor?

Escrito por Melquíades Júnior - Repórter ,

Onde estávamos um ano atrás e para onde iremos? A distância que se percorre com o tempo é a única que ninguém chega primeiro, a menos que seja um sem tempo a perder. Um ano atrás, perambulamos pelas ruas de São Paulo no esforço de encontrar cearenses trabalhadores que iriam passar o fim de ano longe de suas famílias, porque vivem o meio do caminho de um sonho em que a única certeza é mesmo sonhar.

Doc Avisa Lá

 

A distância para realizar é justamente o tempo que se leva. Mas o esforço era aquilo que o jornalismo se propõe ser: mensageiro. Neste 2017, tentamos voltar, senão ao ponto inicial, às pessoas que nos deram partida um ano atrás. E ver o tempo que passa para o outro é como encontrar um fôlego de nosso próprio tempo, aquele em que também não ficamos parados. E no que evoluímos.

Carlos Augusto decidiu que queria uma casa e correu de Ibiapina para a Avenida Paulista, por onde também passa apressado Júnior Lima, um dedicado garçom que não para de se aperfeiçoar na área e ter vários empregos, numa vida em que dorme quatro horas por dia; Vicente e Marcela, porque queriam "tacar os pés no mundo", saíram de Fortaleza para uma vida itinerante de fazer mágicas nas ruas, mas numa condição que o dinheiro some e não volta.

O nosso encontro com o casal deu-se na rodinha de curiosos que se forma na Avenida Paulista em torno de pessoas invisíveis, até que elas gritam em forma de uma arte ou, simplesmente, curiosidade. Depois de uma sessão que começou com uma cobra de borracha, mas real aos olhos, passou por cartas que aparecem, incrivelmente, na mão de quem tenta em vão descobrir o segredo, e um copo com água derrama num jornal, que não molha, Marcela Andrade ouve a palavra Ceará como se apenas isso lhe bastasse para tocar a ferida: "é saudade. Sinto falta de minha mãe. Hoje eu sei o quanto ela estava correta, e tenho vontade de pedir desculpas. Percebi que tudo na vida é difícil e só vai tentando quem tem coragem de viver. Por isso, eu peço desculpas a ela, se puder 'ouvir' este recado. O Vicente é artista de rua. Uns gostam, outros criticam quem trabalha na rua, mas estamos tentando. A gente vai conseguir, eu tenho fé".

Até as aventuras cansam e, na condição de andarilhos, saber que tem um lar, e uma cama quentinha à espera, incomoda. "Queria ver era aparecer nossas passagens (de volta para o Ceará)", resmunga para o namorado mágico Vicente.

Longe da "avenida dos sonhos", porém na mesma cidade das "esperanças", que São Paulo representa há mais de século, encontramos quem não pensávamos. Aguardando a vez de entrar, sentado na calçada em uma fila de mais de 500 metros estava Francisco Rodrigues, natural de Paraipaba e há 22 anos em São Paulo, 14 dos quais sem ter contato com a família, saber se estão vivos (e, portanto, a família sem notícia dele. A fila era para entrar no Arsenal da Esperança, um abrigo de pernoite para as pessoas em situação de rua.

"A gente vem do Nordeste pensando: 'vou enriquecer'. Pode ficar rico, mas se não tiver Deus não tem nada. E se a gente parar pra pensar, a gente pode ter muito ou pouco, mas um dia eu vou partir, você vai, ele vai". Entre os amigos que criou, Francisco é dito aquele que dá força aos que estão em maus momentos. "Fica assim não, irmão", para um consolo.

O encontro com Francisco, um ano atrás, foi cercado de surpresas. A primeira foi ouvir uma lição de palavras do homem que vive nas ruas e combate o vício do álcool refugiando-se em templos abertos ou mesmo fazendo algum biscate. A outra, maior delas, foi retornar ao Ceará e, de posse apenas de um nome completo da mãe e da irmã, ir à cidade Natal de Paraipaba em busca dessa família. Foi numa emissora de rádio local que pedimos a atenção de "quem tem um parente em São Paulo que não vê há muito tempo". As horas que se seguiram foram narradas no especial "Avisa lá", que reuniu todas as histórias e, sim, o reencontro (apenas na forma de notícias) com a mãe Francisca Rodrigues.

"Notícia ruim acontece ligeiro, mas notícia boa também pode ser ligeiro, né? Eu sempre quis ter notícia dele, mas nunca imaginei como ela iria chegar. Meu Deus, Meu Deus, não quero que ele tenha morrido. Mas se tiver, quero ter notícia dele. Não sei se é pior: perder um filho ou não saber se perdeu. Aí de repente vêm vocês". Tem um ano do "de repente" que nos levou a Carlos, Júnior, Marcela, Vicente e Francisco.

Terminando a casa

Carlos continua trabalhando numa rede de restaurantes até o tempo de terminar a casa que constrói no Ceará com as próprias mãos durante todo o mês de férias. Para isso que foi para São Paulo, e por isso voltará para sua cidade natal. "Minha casa falta pouco pra finalizar". Carlos Augusto é daqueles filhos que cresceram muito afetuosos com os pais em casa, até que aos 25 anos desgarrou pelo sonho. A saudade da mãe, Hosana, finge que fica menor no contato pelo WhatsApp, "que pra falar com filho, mãe aprende a mexer em tudo", confessa.

"Aquilo que era presente hoje é passado, mas um passado que tenho orgulho. Continuo, persistente, batalhando e progredindo; continuo firme com o pé no chão e de cabeça erguida ando lado a lado com a humildade. Só percebo que fico a cada dia mais forte com as pancadas da vida e as pedras pelo caminho fiz o meu alicerce e os fardos converti em persistência e determinação, sempre visando o melhor. Deus é maravilhoso e só tenho a agradecer", conclui Carlos, hoje um ano mais próximo de voltar para casa.

Da bandeja em diante

"Eu continuo uma rocha de sonhos". O garçom Júnior Lima segue a fineza do figurino de quem atende em restaurantes de hotéis cinco estrelas com a ambição: ter o próprio restaurante. Abandonou a faculdade de Farmácia, que cursava até o ano passado, mas tinha o tempo preenchido antes e depois das aulas por muito trabalho. "Vou fazer agora um curso de sommelier, para harmonizar comidas e vinhos. Já me resolvi que vou investir nesse ramo, que não tem crise. É pegar experiência para botar o próprio negócio". Júnior diz que após a publicação da matéria "choveu" de propostas.

Em família

Quando chegaram a São Paulo, Marcela e Vicente já estavam havia alguns meses saltando entre os estados, fazendo números de mágicas nos centros urbanos e "comendo" um dia de cada vez. De quando nos encontramos na Avenida Paulista um ano atrás para agora, colocaram na cabeça que queriam voltar. Foram vários destinos até Fortaleza, cada parada servindo para apurar o dinheiro da próxima. Assim foi em Minas Gerais, Bahia, Alagoas, Recife e, finalmente Fortaleza, Ceará.

"Estamos de volta. Tão bom. Viu aí, a foto do Natal?". Era uma imagem da ceia preparada em casa com a família. O sorriso aliviado contrasta com o apreensivo de 2016.

O filho vivo

Depois da "descoberta" de que o filho estava vivo, após 14 anos sem notícias, Dona Francisca passou a sentir um peso a menos todas as noites de dormir. Mas Francisco, que ela chama "Mauro" desde a infância, decidiu continuar em São Paulo, pois não seria tão fácil voltar. "Mas eu mando o dinheiro, meu filho". O que a mãe não sabia era que, ao sair de casa, em Paraipaba, Francisco deixava o quarto, mas outras coisas para trás - sobretudo o pai, cuja relação era conflituosa para proteger a mãe da rebeldia do marido tomado pelo álcool. O filho, hoje com 47 anos, 23 dos quais em São Paulo, tenta um tempo de viver que não se mede em anos. A esperança da família é a de que, se de repente ele ressurgiu. No mesmo de repente volte.

Passado um ano de "Avisa lá", o tempo dos sonhos não parece ser medido em anos, mas pelos desejos de quem os vive. Os cinco cearenses encontrados seguem, invariavelmente, seus sonhos, ainda que distantes dos familiares. E você, leitor, o que fez no último ano?

Conteúdo Avisa lá

Para conferir o Doc, acesse: http://bit.ly/avisala

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