Arte como elemento de inclusão social

Escrito por Redação ,
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A grandeza de personagens que transpuseram barreiras, através da arte, é tema da reportagem de hoje

A capacidade do homem de se superar e desenvolver suas potencialidades, em situações adversas, não tem limite. São exemplos disso David Valente, Thiago de Sandes e Hortêncio Sales. Como muitos outros personagens anônimos, neles a deficiência, física ou intelectual, não é motivo para não ser feliz. Ou ainda: da diferença desenvolveram sentidos e habilidades impensáveis.

A voz é esplêndida, a personalidade firme e o humor nas alturas. Mas não é só por isso, ou tudo isso, que David Valente mobiliza atenções ou cria empatias ao primeiro contato.

Conhecido no meio artístico cearense como cantor, compositor, músico, arranjador e produtor musical, David lançou, em 1998, seu primeiro CD. Sua arte extrapolou fronteiras. Divulgada fora do Estado, também já chegou a Portugal.

Nele, os pés são a extensão das mãos e com a boca aprendeu até a escrever, dentre muitas outras habilidades desenvolvidas para suprir a ausência da mobilidade dos braços. “Sou feliz”, fala, sem deixar de mencionar o imensurável apoio dos pais e amigos na trajetória de ruptura das diferenças.

O artista, hoje com 30 anos de idade, é portador de uma deficiência físico-motora congênita (artrogriposse), que o impede de usar as mãos normalmente. Contudo conseguiu desenvolver habilidades com os dedos dos pés tais como: escrever, digitar no teclado do computador, tocar o teclado musical, pegar objetos etc.

Além da ajuda de profissionais da terapia ocupacional para minimizar as limitações provocadas pela atrofia dos membros superiores, foram determinantes, ainda, a força de vontade e a fé em Deus, ressalta.

Formado em Filosofia, David canta em português, espanhol, inglês. “Italiano eu arranho”, admite, lembrando dedicar-se, ainda, ao canto de fados.

Amor à vida

A arte foi também o canal de expressão encontrado por Hortêncio Sales, 66 anos, deficiente visual, que por meio da literatura dá vazão a sua sensibilidade. Dentre muitas outras atividades culturais, Hortêncio participa de oficinas de artes cênicas no Theatro José de Alencar. Chegou a protagonizar a peça “Vida de cego é uma comédia”, na Capital e no Interior, além de diversos esquetes encenados em colégios e faculdades.

Também criou, ao lado de Ruth Queiros, a personagem “Inclusilda”, representando uma deficiente visual e hilária que enfrenta dificuldades para entrar na faculdade e diversos outros percalços em casa, na rua, em restaurantes, no trabalho ... mas, óbvio, ser perder o humor. “A Inclusilda procura conscientizar a sociedade como deve tratar aqueles que não enxergam”, esclarece.

Hoje, Hortêncio faz parte, ainda, do Projeto Acessibilidade da UFC, que busca melhorar a capacitação de pessoas com algum tipo de deficiência. O projeto disponibiliza, por exemplo, programas de leitura sonora destinados a computadores de quem não enxerga. No apartamento, no Itaperi, onde reside, um mundo de possibilidades se abre para Hortêncio, graças ao programa Dosvox instalado em seu microcomputador.

Como poeta, obteve reconhecimento, pela primeira vez, ao conseguir publicar, em 2002, quatro de seus poemas na coletânea “Amor, música e poesia”. A obra, editada por Antônio Pompeu, reúne trabalhos de 173 autores cearenses.

E não é só: o trovador Hortêncio é um tarimbado vencedor de concurso desse gênero lírico, filosófico e humorístico. Tem sido assim, por exemplo, em concursos da União Brasileira de Trovadores, já alcançando oito primeiros lugares.

Seu primeiro livro solo — uma miscelânea de poesias, prosas e crônicas intitulada de Alma Nua — encontra-se no prelo. Acompanhado da imprescindível bengala, Hortêncio buscou, pessoalmente, o patrocínio de empresários locais. As portas onde bateu se abriram para ele, que radiante aguarda para julho a publicação da obra, fruto de mais uma das inúmeras batalhas desenvolvidas por esse autor que não se curva às barreiras da exclusão e está prestes a alcançar mais uma vitória.

“Gosto de desafios. Nunca digo não sou capaz, não sei fazer, não vou conseguir. Tomo decisões confiante no acerto, em Deus e no amanhã”, sentencia. E mais que oferecer lições teóricas de vida, torna-se ele mesmo um exemplo de que a sociedade pode não apenas conviver em harmonia, mas também aprender com o diferente.

DEFICIENTE VISUAL
Comediante e poeta revela alegria de viver

“Prometi a mim mesmo que jamais choraria de tristeza. Isso porque já o fizera tantas vezes (...) se alguém me surpreender chorando, saibam será de alegria”. O trecho é da crônica do deficiente visual Hortêncio Sales Pessoa. Mas nem de longe retrata a real capacidade do autor de ser otimista e amar a própria vida.

Hortêncio perdeu a visão de forma gradual, em um processo iniciado quando tinha 24 anos. Passou por cirurgias, mergulhou na dor e há cerca de oito anos apresenta uma cegueira total e irreversível.

Aos 66 anos, é um sobrevivente ao sofrimento. Divorciado e pai de dois filhos adultos, hoje ultrapassou as barreiras que o acaso lhe impôs e traça o seu caminho. Escritor, poeta, cronista, ator, comediante e cidadão atuante em defesa da inclusão social dos “diferentes”, Hortêncio teria muitos motivos para ser triste, desolado ou pessimista. Ao contrário dos prognósticos mais sombrios, confessa, seu encanto pela vida.

Sonho colorido

“Até sonho colorido”, diz. E neles, quem encontrou depois da perda visão adquire a feição de pessoas que conheceu quando enxergava, conforme as semelhanças na personalidade ou a fatores que fogem a sua compreensão.

Tudo bem que não pense mais em casamento. Porém, isso não significa que, mesmo na faixa eufemisticamente denominada de melhor idade, tenha problemas com a libido. “Como a juventude, também estou até ficando”, confessa sorrindo.

Hortêncio mora com a filha solteira Germana de Lima Pessoa, 22 anos, universitária. Quando a moça está ausente de casa, ele costuma fazer a própria alimentação e a limpeza de casa. “Às vezes, esqueço que sou cego”, depõe. Mesmo sem ter cursado uma faculdade, fez de tudo um pouco. Foi comerciante, proprietário de depósito de material de construção, corretor de telefone etc.

A completa deficiência visual de hoje se origina em uma pedrada que levou quando estava com 11 anos, resultante da ira de um coleguinha que não gostou de ter chamado por um apelido pejorativo. “Coisas de criança”, lembra ele, adiantando que o descolamento da retina o levou ao Rio de Janeiro, onde foi submetido a uma cirurgia. Depois de seis meses, retornou a Fortaleza com a capacidade de enxergar em cerca de 40% e somente pelo olho esquerdo. Ficou um ano sem estudar e passou a usar 13 graus para corrigir miopia. “Eu adorava ler”, recorda, explicando que enquanto pôde manteve esse hábito. 

ROMPENDO COM O ISOLAMENTO
Autista se destaca na música e na escrita

A arte é também um dos canais de expressão e de contato com o mundo do autista Thiago de Sandes, 32 anos. Autodidata, aprendeu a ler e a escrever sem ter freqüentado escola, e, logo cedo, mostrou talento para música, além da facilidade de se adaptar às novas tecnologias.

Os pais, o engenheiro agrônomo João Eduardo Pereira Filho e a assistente social Tereza Maria de Sandes Eduardo Pereira, são incansáveis no amor dedicado ao filho e nos estímulos proporcionados para que Thiago rompa com o “isolamento” do mundo.

Ele estava por volta dos três ou quatro anos de idade quando ganhou instrumentos de brinquedos (trompete, sanfona, violãozinho etc). Ao olhar amoroso e atento dos pais, o deslumbramento de Thiago não passou desapercebido. A partir daí, vieram o violão clássico, posteriormente, o teclado portátil e a bateria. Hoje, estuda piano no Conservatório de Música Alberto Nepomuceno.

Mas não é só isso, as múltiplas habilidades de Thiago incluem, ainda, o canto e a escrita. A beleza da voz barítono pôde ser mostrada no disco “Eu Também Canto”. Além disso, está prestes a gravar um CD em dueto com David Valente.

“Ele gosta muito de ler biografias”, informa o pai João Eduardo, citando, como exemplos, os livros sobre o jogador Garrincha, Gonzaquinha e Gonzagão e sobre a cantora Elis Regina. Ávido por leituras de jornais, livros, revistas e publicações na internet, Thiago é autor do livro de crônicas “Eu Também Conto”. Facilmente conectado aos recursos tecnológicos, tem uma home pager, que mantém atualizada sobre observações suas do mundo e com relatos de eventos que considera significativos em sua própria vida. 

Mozarly Almeida
Repórter

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