Arquitetura do medo: como a Capital se refugia nos muros

Replicando parcialmente um modelo medieval, as residências de Fortaleza vêm se escudando atrás de cercas, grades e paredes altas, tirando da rua seu caráter de integração e convivência entre os habitantes da metrópole

Escrito por Nícolas Paulino - Repórter ,

Retorcido no fogo, o metal se enverga e assume um formato floral, curvilíneo, se emendando a outras ramificações para construir um portal que, mais tarde, será chumbado em alguma parede. Alguns desenhos, mais simpáticos, exibem círculos, elipses, triângulos, trapézios. Outros, mais austeros, ostentam retas invergáveis, extremidades pontiagudas, lanças empunhadas por guardas invisíveis. Em último caso, as estruturas são bem antipáticas, fechadas em placas duras e lisas. Dia a dia, Fortaleza vai se encerrando nos próprios portões, acuada pela insegurança e pela violência, espiando as ruas pelas frestas de seus muros.

> Criminosos preferem locais escuros e vazios

Afinal, as mesmas vias, vivas durante o dia, rosnam apreensão ao escurecer. É preciso apressar o passo, ter a chave de casa próxima, talvez no cós da calça, à altura da mão; o giro na fechadura precisa ser rápido, o clique preciso, a tranca apressada? Ufa! Estou em casa. Porém, isso nem sempre é garantia de tranquilidade. A reportagem solicitou à Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social (Sspds) dados sobre roubos a residências. No entanto, o órgão os contabiliza junto com roubos de cargas, veículos e com restrição à liberdade das vítimas: foram 2.994 ocorrências nos três primeiros meses deste ano, e quase 13 mil no ano passado.

A situação deriva do advento do condomínio fechado. Desde os anos 1970, aponta José Borzacchiello da Silva, professor do Departamento de Geografia da Universidade Federal do Ceará (UFC), um novo desenho passou a ganhar força na cidade. Angustiados por proteção e uma vida longe da violência crescente, muitos elegeram os condomínios como solução de moradia. Nesse processo, foi-se criando uma Fortaleza murada, cuja nova concepção urbanística trouxe uma sensação de deserto. A vida se encurvou para dentro, replicando o modelo medieval.

Privacidade

"As cidades, na Idade Média, eram muradas. Só ficava dentro quem podia pagar preços altíssimos pela proteção do senhor feudal, com vigias e soldados armados, ou seja, segurança privada", explica. O especialista compara, ainda, a Fortaleza atual a um arquipélago, formado por várias ilhas de grandes condomínios, que passaram a favorecer uma dinâmica social egoísta, intensificando a cultura da privacidade e do individualismo.

As grandes estruturas fechadas se pautam na diferenciação socioespacial, dividindo quem pode ou não pagar por tal custo de vida. Entretanto, os muros, ao darem a ideia de uma proteção infalível, tiram a dimensão real do perigo. "O contingenciamento não resolve. Ele dá a impressão de segurança, mas você se expõe de uma forma ou de outra. E a população de classe média, no dia a dia, vai andar em carros 4x4, mais altos, com vidros fechados e blindados, para se sentir mais protegida", diz Borzacchiello.

Embora fortificado, segundo empresas de segurança patrimonial, o resguardo dos muros pode não ser tão eficaz como se imagina: se transpô-lo, um criminoso pode ficar protegido dos olhares de testemunhas e agir sem ser notado. Daí a importância de uma boa visualização de dentro para fora da residência, sem a interferência de árvores ou marquises que possam servir de esconderijo.

O presidente do Sindicato da Indústria da Construção Civil do Ceará (Sinduscon-CE), André Montenegro de Holanda, confirma: a segurança molda os projetos de novos condomínios desde a concepção e é uma demanda dos próprios clientes, que aplicam cada vez mais em home clubs, empreendimentos repletos de áreas de lazer. "Investe-se muito em alguns tipos de identificação, como a impressão digital, em elevadores que só vão para alguns andares, e em entradas individualizadas", detalha.

Verticalização

O engenheiro percebe ainda que, hoje, poucas pessoas optam por morar em casas isoladas. A tendência é a multiplicação dos condomínios e, com ela, a verticalização da cidade. "É um processo que vejo com bons olhos. O urbanismo moderno tende a adensar, e não a espalhar a cidade. Com isso, você não tem muitas vias públicas para manter porque tudo fica mais próximo", defende.

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Cercantinas eletrificadas e pontas de ferro encimam centenas de residências em Fortaleza, na tentativa de proteger o patrimônio de moradores e coibir a realização de atos criminosos (Foto: Saulo Roberto)

Cresce demanda por grades e portões de aço e alumínio

Os sons estridentes que invadem o galpão na Aerolândia são entoados pela solda que castiga o aço, deitado sobre cavaletes enquanto um homem o transforma numa grade encomendada por uma empresa de telefonia da Capital. Antes dele, naquela manhã, outras duas já haviam deixado o local para serem instaladas em prédios nos bairros Passaré e Sapiranga e, mais uma, no Porto das Dunas, em Aquiraz.

A lista de bairros atendidos, porém, vem se expandindo. "Temos clientes em Messejana, Parangaba, Castelão?", enumera Luiz Pedro Medeiros, gerente da empresa de fabricação e recuperação de portões e grades de ferro, alumínio, aço e metalon. Ah, algumas encomendas também chegam de municípios da Região Metropolitana de Fortaleza, como Caucaia e Eusébio.

Antes, o foco da metalúrgica era cobrir o segmento industrial, mas a grande demanda de pessoas físicas surgiu como oportunidade. Hoje, as grades ganham "disparado" dos portões. Não da área nobre, foram os pedidos da periferia que "incrementaram bastante o faturamento da empresa". "O alumínio é mais leve e dá uma suavidade na fachada. O aço é mais resistente, embora tenha a questão da ferrugem", descreve Medeiros.

Porém, enquanto opera para prover equipamentos de segurança patrimonial, a própria empresa já foi alvo de ataques de invasores da região. "A cada vez que entram, a gente faz um reforço e vai se fechando mais", explica o gerente, apontando para as telhas de zinco e concertinas elétricas instaladas no teto.

No resto da cidade, os cuidados assumem as formas de fios eletrificados e olhos eletrônicos de câmeras de segurança, em áreas mais abastadas; nas periferias, são improvisados com grades nas janelas, cacos de vidros e pontas de ferro. Para o observador mais atento, essa "estética da insegurança" dá nas vistas, com elementos que conferem um aspecto agressivo e nada convidativo a visitantes.

Recursos que tanto podem funcionar para manter criminosos afastados como acabam transformando seus moradores em reféns. "Até os anos 1970, Fortaleza era uma cidade de bairros. Depois da instalação de grandes estruturas, como shoppings, supermercados e condomínios, as ruas perderam sua condição de espaços de caminhabilidade. As praças, onde, à noite, a população trocava ideias, hoje estão abandonadas", descreve o professor José Borzacchiello, do Departamento de Geografia da UFC, explicando que a violência urbana está intimamente relacionada ao controle do território.

"Quem está fora desses 'condomínios' está mais exposto. Quem não se integra a eles enfrenta as agruras do cotidiano. É preciso, novamente, tentar dar vida aos bairros, mas deveria, antes, haver o controle da violência, que vai adquirindo novas feições. Há toda uma atmosfera do medo", analisa.

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