Ação Civil Pública por discriminação religiosa

Escrito por Redação ,
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Inédita no Brasil, a ação judicial tramita na 8ª Vara Federal e pede tutela antecipada para vetar ato discriminatório

O funcionário público Sebastião Ramos de Oliveira, 53 anos, é um homem de fé. Faz suas orações e leitura da Bíblia diariamente, além de seguir os preceitos cristãos. Até 2008, ele era Testemunha de Jeová, congregação à qual era associado desde 1998. Frequentava o Salão do Reino do Bairro Parque Jerusalém e chegou a ser servo ministerial, posição inferior apenas à de ancião.

Agora, numa ação judicial inédita no Brasil, ele acusa a denominação de patrocinar a discriminação religiosa contra seus ex-seguidores. A Ação Civil Pública, que tramita na 8ª Vara Federal do Ceará, pediu tutela antecipada para vetar publicações e atos que configurem discriminação contra ex-associados, sob pena de multa de R$ 10 mil por cada ato identificado.

Tudo começou quando Sebastião teria cometido um erro que o levou a ser expulso da congregação: escreveu artigos para jornais para divulgar suas crenças. "Eu falava bem das Testemunhas de Jeová nesses artigos. Eu acreditava tanto que queria divulgar essa proposta de vida. Mas quando dei por mim estava sendo acusado num tribunal eclesiástico", explica.

Segundo ele, no tribunal não havia defesa nem testemunhas, só três anciãos que decidiram desassociá-lo da congregação. "O pior é que, durante o processo, os demais membros não sabem por que você está sendo processado, e isso dava margem para se pensar qualquer coisa".

Exclusão

Para as Testemunhas de Jeová, a desassociação equivale à excomunhão católica, mas eles vão além. Os membros da congregação, incluindo amigos e até familiares do desassociado, são instruídos a cortar relações e sequer dirigir-lhe a palavra, sob pena de também serem alijados da comunidade.

"Minha irmã e meu sobrinho são Testemunhas de Jeová. Mas desde então eu não posso ir mais à casa dela, só conversamos sobre assuntos domésticos. Foi horrível porque ela era uma grande amiga", lamenta.

Sebastião Oliveira diz que outros amigos com quem trabalha não almoçam mais com ele e até viram-lhe o rosto. Servidor da Universidade Federal do Ceará (UFC), ele integrava um grupo de grevistas quando foi impedido de entrar na Maternidade Escola Assis Chateaubriand por uma funcionária. Ela é Testemunha de Jeová e alegou que não podia estar no mesmo lugar que um desassociado.

"O pior é que quando você se converte, há um incentivo para que você só se relacione com os membros da comunidade. Só que quando você é desassociado ou opta por outra religião, você simplesmente perde essas relações que construiu ao longo de anos e fica isolado. Há uma pressão muito forte pelo silêncio até mesmo entre os ex-membros da congregação".

Além da Ação Civil Pública, Oliveira acionou a Justiça estadual contra duas lideranças das Testemunhas de Jeová. Ele alega que, durante um ato público na Praça do Ferreira, sofreu ameaças. "Eles diziam ´você tem que se calar, senão terá poucos dias de vida´", revela.

Ativismo

Hoje, Oliveira diz que se relaciona com pessoas de todas as denominações e luta contra a discriminação religiosa. "De certa forma o que aconteceu foi bom para mim, porque eu passei a me relacionar com outras pessoas, a abrir meus horizontes a partir do respeito às diferenças. Mas há pessoas que não aguentam a pressão, ficam traumatizadas com o isolamento, sem falar dos casos de suicídio. E isso não pode continuar".

DIGNIDADE HUMANA
Procuradora ressalta para afronta à Constituição

A Ação Civil Pública acusa a Associação Torre de Vigia de Bíblias e Tratados, que representa as Testemunhas de Jeová no Brasil e, no Ceará, a Associação Bíblica e Cultural de Fortaleza. Ambos são acusados de promover a discriminação religiosa e pressionar seus adeptos a não manter relações com apóstatas, como são chamados os que, para as Testemunhas de Jeová, desertaram da verdadeira fé.

Segundo a procuradora da República Nilce Cunha Rodrigues, autora da ação, a prática adotada pelas Testemunhas de Jeová contra os desassociados e os dissociados (que pedem o desligamento voluntário da congregação) afronta princípios constitucionais, como a dignidade humana, a proteção à família, além das liberdades de associação e de crença.

"O Estado não pode nem quer interferir na liberdade de crença. Mas a forma como esta ou aquela religião se expressa é limitada pelos direitos fundamentais, garantidos pela Constituição. No meu entendimento, quando os acusados instituem uma série de proibições e sanções para impedir o relacionamento de seus membros com desassociados e dissociados, isto configura discriminação".

A procuradora defende que tais orientações dão margem para que esse afastamento aconteça não apenas por decisão espontânea de cada indivíduo, mas também possa ser motivada pelo medo de ser desligado da comunidade.

"Estas pessoas são excluídas de vínculos estabelecidos ao longo de anos. Há publicações que dizem que não se pode trocar sequer um ´oi´. Sem falar no efeito devastador que essa imposição causa nas famílias, que devem ser preservadas", diz.

Por telefone, o advogado Edmar Alves, que representa a Associação Bíblica e da Cultural de Fortaleza, disse que as entidades não vão se pronunciar pois não foram notificados sobre a Ação Civil Pública.

FIQUE POR DENTRO
Religião cristã

Testemunhas de Jeová é uma comunidade que se autodenomina religião cristã não-trinitária (que discorda do conceito de um Deus formado pelo Pai, Filho e Espírito Santo). Iniciaram suas atividades no fim do século XIX, quando Charles Taze Russell e alguns amigos formaram um grupo de estudo da Bíblia na cidade americana de Pittsburgh. Foi introduzida no Brasil em 1923, por um grupo de marinheiros norte-americanos. Hoje com sede em Nova York, as Testemunhas de Jeová têm adeptos em 236 países e territórios autônomos, com mais de 7,5 milhões de praticantes.

KAROLINE VIANA
REPÓRTER
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