Da infância aos 14 anos, Leandra (nome fictício que optamos por usar para preservar a fonte), viu a mãe, uma dona de casa, negra, moradora da periferia de Maracanaú, sofrer inúmeras violências praticadas pelo padrasto, o segundo marido da mãe. Sucessivas dores e angústias de ambas e também dos demais filhos que vivenciaram o martírio da violência contra a matriarca. Décadas depois, eles, relata Leandra, sentem os danos provocados à saúde mental da mãe que, pouco a pouco, foi sendo comprometida. 

A mulher que, além da violência, lidou no decorrer da vida com as privações geradas pelas limitações financeiras em uma família que, por décadas, padeceu com a pobreza, há quase 10 anos, trata uma depressão severa associada à ansiedade.

Agora, com 68 anos, idosa e aposentada, é uma paciente cronificada, usa medicação contínua, e evidencia a necessidade de trazer para o centro da discussão da saúde pública ações direcionadas à junção: gênero, pobreza e saúde mental. 

$alt
$alt
$alt
Legenda: Um dos pontos que precisa de atenção é identificar as causas que geram as demandas na saúde mental
Foto: Fabiane de Paula

Na quarta edição do especial jornalístico "Nenhuma a Menos", uma série de 10 reportagens — que integra o "Projeto Elas" —, o Diário do Nordeste discute atitudes, costumes, tradições, aspectos biológicos e comportamentos que impactam na saúde mental de meninas e mulheres, visando debater formas de buscar seu bem-estar, entendendo que essa é uma demanda coletiva, de toda a sociedade, e que atravessa questões que vão além de doenças, pois ultrapassam temas como saúde e envolvem educação, cultura, política e economia.

"Pelo fato de não ter conhecimento (à época) dos cuidados em saúde mental, na minha cabeça, eu podia cuidar da minha mãe. Eu podia dizer: 'me dê o remédio que eu cuido da minha mãe'. Só que não é assim que funciona. Minha mãe estava colocando a própria vida em risco diante da crise que ela estava tendo", relata a filha. 

Um dos abalos mais significativos, conta, foi quando em 2016, a mãe que já tinha saído do ciclo da violência doméstica e estava separada do ex-companheiro, em uma crise psiquiátrica precisou de internação. O Hospital de Saúde Mental Professor Frota Pinto, em Messejana, única emergência psiquiátrica da rede estadual, foi a unidade que a acolheu. 

Nesse processo, eu comecei a adoecer. Toda vida que eu ia visitar minha mãe era muito pesado. Por causa dessa experiência, eu pude entender que as vítimas de violência doméstica e familiar saem desse ciclo de violência adoecidas. E as pessoas ainda têm falas que não ajudam, quando falavam o nome da minha mãe falavam ‘fulana ficou louca’. Isso dói. 
Leandra
(nome fictício que optamos por usar para preservar a fonte)

Nesse percurso, Leandra passou a integrar o Movimento Cearense da Luta Antimanicomial, organização da sociedade civil que reúne pacientes, familiares e profissionais da saúde mental na busca por melhorias para o sistema de saúde e combate a práticas manicomiais.

Ela reforça que “uma vez que a mulher adoece, a família inteira adoece junto. Esse momento (a internação em outubro de 2016) foi um divisor de águas", destaca.

Ao sair da internação, diz, a mãe foi encaminhada para um dos serviços da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), mais precisamente um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) para realizar o tratamento.

Veja também

Mas aí vieram outros obstáculos como: dificuldades de acesso e custos da medicação. Passados alguns anos, a mãe de Leandra segue em acompanhamento, toma medicação de alto custo paga pelo Estado e, em um ciclo de cada dois anos, tem precisado trocar os medicamentos. 

Minha mãe é aposentada e o atendimento dela oscila entre o atendimento público e o privado em clínica popular. Quando estamos esperando e não conseguimos no público, vamos para o particular. E isso faz a gente tensionar o espaço público para conseguir a consulta. Ela tem o suporte emocional da família, consegue receber o remédio e hoje temos uma condição melhor e dividimos as despesas.
Leandra
(nome fictício que optamos por usar para preservar a fonte)

Os custos de cada atendimento privado, ainda que em uma clínica popular, é de R$ 190,00, explica. Ainda assim, destaca, é inferior aos R$ 400,00 ou R$ 550,00, em geral, cobrados por cada consulta psiquiátrica em atendimento privados em instituições de status mais elevados.   

“A cada dois anos, por precisar trocar de medicação, ela passa por uma internação. A gente se programa para ter acompanhante em todos os turnos, pagar, dividir o custo. Somos quatro filhos e hoje três conseguem ajudar mais. Ela já não passa por falta de medicação. Mas a pergunta é: numa realidade de periferia, qual a chance de pessoas conseguirem comprar remédios para tratamento mental? Em um contexto de favela, Bolsa Família, qual a possibilidade de pagar uma consulta de R$ 200,00?”, aponta. 

separador

Atendimento de mulheres na saúde mental

A história de Leandra e de sua mãe ilustra como as demandas relacionadas ao atendimento de mulheres na saúde mental têm muitas camadas que precisam ser consideradas pelas redes de saúde. Isso para que seja possível identificar as causas e origens desses adoecimentos, bem como oferecer tratamentos que encarem a existência dessas inúmeras dimensões na vida da população feminina afetadas pelo adoecimento mental. 

No Sistema Único de Saúde (SUS), ao olhar especificamente para os atendimentos de saúde mental das mulheres, há um foco: as vítimas de violência. Essa é uma das dimensões que dada a sua relevância e o impacto no adoecimento de mulheres, de fato, precisa ser prioridade e tem recebido, em certo grau, atenção do sistema de saúde, nos últimos anos, gerando, um incremento da oferta de serviços especializados de atendimento. Mas essa não é a única dimensão que demanda atenção. 

$image.meta.caption
$image.meta.caption
$image.meta.caption
Legenda: Nos Centros de Atenção Psicossocial da Capital não há registro dos atendimentos por gênero
Foto: Fabiane de Paula

Relatório publicado pelo Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS) - organização sem fins lucrativos, independente e apartidária - e o Instituto Cactus, em 2022, sobre o cenário atual de políticas públicas para a saúde mental de meninas e mulheres, ressalta que o adoecimento mental de meninas e mulheres é causado por diversos fatores, como:

  • Estressores na atuação profissional como a histórica desigualdade salarial ou mesmo a falta de acesso ao trabalho diante da maternidade;
  • A economia do cuidado, trabalho não remunerado e invisibilizado realizado por mulheres que as sobrecarrega e pode levar ao adoecimento; 
  • A problemas com a autoestima e a confiança corporal, sobretudo, em etapas da vida como a adolescência;
  • Experiências relacionadas à maternidade, como a depressão pós-parto, por exemplo. 

 No Brasil, a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), que é um conjunto de serviços e ações do SUS para atendimento a pessoas com problemas mentais e dependência de álcool e drogas, em geral, não tem iniciativas específicas direcionadas a meninas e mulheres. 

Para se ter dimensão, em Fortaleza, a Secretaria Municipal da Saúde (SMS) informa que nos 16 Centros de Atenção Psicossocial (Caps Geral, Álcool e Outras Drogas e Infantil), unidades voltadas para pessoas com sofrimentos psíquicos e/ou transtornos mentais moderados e grave ou com dependência química, há 106.288 prontuários ativos na Rede, sendo 53.153 nos Caps geral, 16.640 nos infantis e 36.495 no Caps AD. 

Mas, nesses dados não há a especificação do gênero de quem é atendido, ou seja, sequer é um fator considerado, por exemplo, para direcionar ações específicas para homens ou mulheres. 

$alt
$alt
$alt
Legenda: Uma das demandas é adaptar os atendimentos para atender às necessidades específicas das mulheres
Foto: Fabiane de Paula

Contudo, as redes de saúde podem traçar políticas que considerem a perspectiva de gênero. Nesse sentido, a coordenadora de Políticas de Saúde Mental da Secretaria de Saúde do Estado do Ceará, Rane Félix, explica que a rede estadual tem estabelecido algumas prioridades de atendimento, como o de crianças e adolescentes em vulnerabilidade, em situação de rua, ameaçadas pela violência armada. E também às mulheres vítimas de violência. 

Assim, na rede de saúde mental, se estiverem dez mulheres para serem atendidas, e entre elas uma vítima de violência, ela deve ser prioridade. Porque essa pessoa, pela vitimização dela, pode ter desenvolvido ansiedade, depressão e até ideação suicida.
Rane Félix
Coordenadora de Políticas de Saúde Mental da Secretaria de Saúde do Estado do Ceará

De acordo com Rane, no Ceará há 171 Caps. E no trabalho de atendimento às mulheres vítimas de violência, incluindo os serviços de saúde mental, tem sido estruturada a Rede Ponto de Luz, que é um conjunto de serviços em vários níveis de complexidade, da Atenção Primária, da Especializada, da Terciária, para acolhimento e cuidado dessas vítimas. 

Unidades como o Hospital Geral de Fortaleza (HGF); Hospital Infantil Albert Sabin (Hias); e Hospital Geral César Cals (HGCC) são referência para o atendimento. 

separador

O que precisa ser olhado?

A psicóloga e conselheira do Conselho Regional de Psicologia e coordenadora no Movimento Saúde Mental, Natalia Tatanka, destaca que, de fato, na área do atendimento especializado em saúde mental há uma concentração nos cuidados das mulheres vítimas de violência e reforça que “é muito necessário”. Mas, destaca:  

Não podemos esquecer todas as diversas formas de violência que as mulheres enfrentam diariamente que não necessariamente seja a física. Hoje há a online, a psicológica, a sexual, a econômica e a cultural. E não podemos deixar de olhar a violência institucional, que é quando instituições, como o sistema de justiça ou saúde, falham em proteger os direitos das mulheres, ou quando as políticas públicas não atendem suas necessidades. Essas formas de violência têm um impacto significativo na saúde biopsicossocial das mulheres, e é essencial que haja um acolhimento incondicional em qualquer ocorrência.
Natalia Tatanka
Psicóloga, conselheira do Conselho Regional de Psicologia e coordenadora no Movimento Saúde Mental

Ao pensar no atendimento específico do público feminino nos serviços de saúde mental, aponta ela,  é fundamental considerar diversas dinâmicas. Dentre elas, adaptar os atendimentos para atender às necessidades específicas das mulheres.

Isso para ser um espaço seguro e acolhedor para aquela dor; treinar os profissionais de saúde para reconhecer as questões de gênero e suas implicações na saúde mental; e oferecer horários de atendimento que considerem a rotina das mulheres, permitindo que elas possam buscar auxílio sem comprometer outras responsabilidades.

De acordo com ela, além da violência, as mulheres são afetadas por uma série de fatores que podem gerar sofrimento, esgotamento mental e estresse, como: as mudanças hormonais associadas ao ciclo menstrual, gravidez, pós-parto e menopausa; as expectativas sociais sobre o papel da mulher (ser mãe, esposa e profissional); a dependência econômica; e a sobrecarga de responsabilidades em relação aos cuidados do sistema familiar. 

separador