Franceses investem na excelência em gestão de água

Com vocação para lidar com a temática, a região resolveu unir público e privado; e empresa e academia

Escrito por Redação ,
Legenda: Um aqueduto do século XIX revela que a preocupação é antiga na região
Foto: Fotos: Maristela Crispim

Montpellier Na segunda matéria da nossa série sobre a preparação da França para a 21ª Conferência das Partes sobre o Clima (COP21), nosso enfoque é um tema de grande interesse para o Semiárido Brasileiro: gestão hídrica. Localizada a 750 Km ao sul de Paris, Montpellier é uma cidade com mais de mil anos de história, evidente em sua arquitetura que mescla o antigo e o moderno. Capital do departamento Hérault, pertence à região francesa de Languedoc-Roussillon.

A prova da preocupação dos franceses com a água é a existência de um polo de competitividade temático, que agrupa empresas e instituições de pesquisa atuantes em quatro eixos estratégicos dentro do ciclo da água: como encontrá-la, tratá-la e levá-la ao consumidor; gestão; reutilização; e os aspectos sociais e regulamentares. Essas informações foram repassadas por Jean-Loïc Carre, diretor do Polo de Competitividade Água de Montpellier, que nos recebeu na Incubadora Internacional de Negócios de Montpellier (Mibi).

A vocação da região para tratar da temática é tão relevante que a cidade sediará, nos dias 27 e 28 deste mês, o HydroGaia - Salão Internacional de Água, com 140 expositores e previsão de quatro mil visitantes profissionais. Também vai sediar, em outubro, o 66º Conselho Executivo Internacional da Comissão Internacional de Irrigação e Drenagem (Icid) e eventos paralelos.

Carre reforça que o Polo é uma operação de governo que visa fortalecer as cadeias industriais e melhorar a competitividade dos polos tecnológicos mais recentes em água, meio ambiente, lixo, mar e cidades sustentáveis. Só na área de água, contando com três polos complementares, são 450 a 500 empresas e laboratórios em nível nacional com atuação na França e em outros países, com participação do governo nacional e locais, como é o caso da Região Metropolitana de Montpellier.

"Não se trata de uma empresa de prestação de serviços, mas de interface, com atuação no comércio exterior, numa rede mundial e acordos de parceria com equivalentes em outros países como os Estados Unidos, Singapura, Espanha, Reino Unido, Austrália, Alemanha e Brasil", explica.

A missão primeira é desenvolver a inovação / relação das empresas com organismos de pesquisa, por meio de projetos colaborativos. A segunda é estimular as pesquisas pela promoção de competências e capacitação em centros de formação públicos e privados. A terceira é de acompanhamento das empresas.

Reúso

"Muitos projetos ainda testam problemas e soluções, outros estão em pleno funcionamento, nas áreas de reúso de água para a agricultura; gestão para ambientes com excesso ou com estresse hídrico; gestão inteligente de redes; transposição; e análise permanente", enumera.

O diretor do Polo explica que essa questão de reúso na França ainda é polêmica, pela rigidez da legislação, que coloca a saúde pública acima de tudo e adota o princípio da precaução, por maior que seja o estresse hídrico. Sendo assim, uma das justificativas da pesquisa é o alto custo da transposição, além da possibilidade de manutenção da água em seu ciclo local.

Na cidade de Mauguio Carnon, conhecemos o Projeto Now-MMA, de reutilização de águas residuais por meio da associação de pesquisadores e empresas privadas, incluindo a Bio-UV e a Saur, a cujo quadro pertence o engenheiro Erwan Carre. Ele exlicou que o Now-MMA é uma plataforma experimental que funciona em consórcio de municípios da região, numa parceria público-privada. Mostrou, ainda, a cadeia de reutilização da água com três tipos de filtração: filtro de areia, que retira o material mais grosseiro; microfiltração, procedimento inovador; e ultrafiltração, que permite desinfetar a água. Na plataforma, a água residual pode passar pelo filtro de areia e pelo tratamento UV ou usar apenas a ultrafiltração.

Gestão

A parceira BRL Engenharia desenvolveu uma ferramenta regional de gestão hidráulica para usos múltiplos, para satisfação da demanda agrícola e urbana, informa Anne-Claude Peton, coordenadora de negócios para a América Latina e Caribe.

Com 600 empregados, atua com orçamento 80% francês e 20% internacional. De economia mista, conta com quase 50% de participação da administração da Região Languedoc-Roussillon. É responsável pela captação, transposição e distribuição de água a partir do Rio Ródano, manancial francês mais caudaloso e o mais importante europeu a desaguar no Mediterrâneo, com nascente na Suíça. A operação envolve nove barragens, 105 Km de canais, 125 estações, cinco mil Km de canalização e seis plantas de tratamento.

Entre os novos desafios apontados, diante da população que mais cresce no território francês, estão o favorecimento do acesso, antecipar impactos das mudanças climáticas, prevenir riscos à segurança alimentar, economia ambiental, prevenção e gestão de riscos e preservação da biodiversidade. A empresa atua há 25 anos no Brasil, desde 1990 no desenvolvimento hidroagrícola e a partir de 2000 em meios urbanos. Nesse contexto, é responsável pelo projeto executivo da transposição do Rio São Francisco, no Oeste de Pernambuco.

Inovação

A França é dividida em 36 mil municípios, 100 departamentos, 26 regiões e 22 regiões metropolitanas. Claude Zemmour, vice-presidente da Região Languedoc-Roussillon, encarregado da água e da prevenção de riscos, destacou essa política inovadora, tanto em relação à quantidade, quanto à qualidade, para habitantes, indústrias e agricultura, nesta gestão dividida com a BRL Engenharia, vitrine da expertise no campo da água.

"O desenvolvimento econômico da região tem importante papel no ordenamento do território", disse. Ponderou, no entanto, ser a região mediterrânea uma área sujeita a secas e inundações, condição climática natural agravada nos últimos 20 anos, provavelmente pelas mudanças climáticas e mostrou-se preocupado com o aumento do fluxo populacional e a pressão sobre a qualidade da água. O cenário de crescimento, segundo ele, é de 0,5 a 1% ao ano e, com um aumento de temperatura em torno de 1,4ºC, estima-se uma redução na oferta de água em torno de 30%.

Jardins secos

O maior vinhedo da França, responsável por 30% da produção do País, se encontra na região, na verdade, o maior do mundo em termos de qualidade. A região também responsável pelo cultivo de muitos dos legumes e frutas, assim como da água consumidos no território nacional, daí a importância da adoção de uma estratégia eficiente de gestão, modernização de rede de captação e distribuição, e criação de um polo mundial de água. Investiu-se até mesmo na criação de jardins secos, pois gramados em toda parte não é o ideal para a região mediterrânea (algo interessante para quem vive em regiões semiáridas, como o nordeste brasileiro).

Outro aspecto é a sensibilização, conscientização, capacitação de agricultores, para melhoria das práticas, com investimento na produção orgânica. Também foram financiadas pesquisas na busca de água subterrânea (projeto Aqua Domitia), com o objetivo de se antecipar às mudanças climáticas, investimento de 280 milhões de euros e fechamento do ciclo previsto para 2020.

Efluentes 100% tratados

Arnaud Vestier, diretor de Água e Saneamento, chefe de Serviço Integrado de Gestão da Água da Metrópole Mediterrânea de Montpellier, destacou que, todos os efluentes (esgotos) são tratados e que essa influência das mudanças climáticas afeta mais os recursos superficiais que os subterrâneos, daí a inquietação diante da recarga.

Desde a década de 1990 a França vem mudando o modelo de governança da água, dando maiores poderes às municipalidades, mais peso à lógica da bacia hidrográfica, o que distingue os territórios da Bacia do Rio Ródano na Região Mediterrânea. Só que, às vezes, as bacias diferem das municipalidades, daí a necessidade da evolução legislativa que vem sendo promovida, unindo três agentes: o Estado Nacional Francês, os representantes eleitos e o terceiro setor, representado nos comitês de bacias. A governança da água não é consultiva, mas deliberativa. Na Metrópole de Montpellier, a empresa pública de água potável é responsável por uma parte do território. O resto é delegado a empresas privadas, como a BRL.

Para Vestier, o grande desafio de garantir o abastecimento daquele aglomerado urbano crescente, num futuro cenário de mudança climática, é buscar fontes suplementares de captação, sendo, para isso, necessária uma revisão regulamentar relacionada ao Rio Ródano para usar melhor o seu recurso em anos de necessidade, ou seja, captar sem pôr em risco o abastecimento.

Ele contou que, de 1850 até 1982, a cidade era abastecida apenas pelo caudal natural da fonte, transportado ao reservatório da cidade pelo aqueduto construído no século XVII. À época, cada um dos 13 municípios tinha o seu serviço de águas, com rendimento menor e perda maior.

Maristela Crispim*
Editora

*Viajou a convite do Maedi

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